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O fascínio de ler o primeiro volume das memórias de João Coimbra, que aborda o crepúsculo do império, a descolonização por ele vivida na primeira pessoa após o 25 de Abril e as múltiplas frentes do desenvolvimento do Ensino Superior e da ciência, motiva uma reflexão séria, pela densidade da obra e pelo papel na história recente de muitos atores nela referidos.
Com uma infância muito marcada pela perda do pai, em Moçambique, quando tinha seis anos, descreve a fase colonial, o liceu, onde se cruzou, entre outros, com figuras insignes como o seu colega Alexandre Quintanilha, referindo ainda a influência posterior do pai deste na investigação em biologia. As vivências do quotidiano colonial marcam e influenciam o seu caráter, com a democracia e a liberdade a serem valores inegociáveis para a vida. Com o regresso de Angola, envolve-se na aventura do ICBAS da UP, fundado em 1975 por duas das maiores figuras do ensino e da investigação médica, Corino de Andrade, com origens no Alentejo, e Nuno Grande, de Trás-os-Montes. As fortíssimas dificuldades do arranque, implantação e consolidação do ICBAS, que contou com uma oposição feroz do “establishment” da formação em saúde e biologia, são dignas de ser analisadas com o distanciamento de quase 50 anos passados da sua ocorrência. Muitos dos nossos melhores e mais consagrados médicos atuais foram durante anos tratados como “médicos de segunda”, porque formados por uma escola que ousou inovar à frente do seu tempo. Com a consciência de que ainda hoje vemos resquícios destas práticas.
Mas foi sempre o mar o centro da sua vida. Não como uma epifania momentânea em que tudo parece depender de nos atirarmos coletivamente à água, mas de forma metódica, científica, iterativa e sistémica. Com a consciência plena dos desafios que o nosso caráter marítimo sempre encerrou, e que ele de forma tão sublime define no título da sua obra, como os “teimosos de mar”. Eu tive o enorme privilégio, e orgulho, de ter sido convidado a partilhar de forma solidária parte deste percurso.