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Desde o início da guerra na Ucrânia que nos habituámos a ver a China a observar o conflito e a reunir-se, de quando em vez, presencialmente ou à distância, com a Rússia, numa estratégia de ambígua neutralidade.
A China, apesar da sua aparente neutralidade nesta guerra, é um fator de tensão no jogo de forças entre o Ocidente e a Rússia. Uma coisa é medir forças com a Rússia; outra, muito diferente, é fazer um jogo de forças com a China, ou com a Rússia e a China juntas.
É certo que o Ocidente tem agora um novo fôlego com a adesão da Finlândia à NATO. Esta Organização ganhou, com este novo aliado, mais 1340 quilómetros de fronteira com a Rússia e, com estes, alargou a capacidade de defesa do Ocidente face à Rússia.
Ainda assim, quando a China se perfila como eventual aliada da Rússia, o equilíbrio de forças entra em perigo. É também por isso que nem a União Europeia nem os EUA afrontam diretamente o regime chinês, a não ser quando está em causa a defesa de Taiwan - a ilha formosa descoberta por navegadores portugueses no longínquo século XVI - e o pacífico.
A deslocação, há uns dias, da Presidente da ilha taiwanesa, Tsai Ing-wen, aos EUA irritou a China e acionou todos os alertas de segurança em Taiwan. A China aproveitou esta viagem de Estado taiwanesa para realizar um simulacro de cerco e de ataque à ilha que continua a reclamar como sua, apesar desta ter autonomia governamental desde 1949.
As manobras dos navios de guerra da China nos mares que banham Taiwan e o voo dos aviões militares chineses sobre a ilha assumiram a forma de um verdadeiro cerco à ilha formosa, o que constituiu um dos momentos mais críticos, dos últimos tempos, fazendo perigar a paz naquela região do globo.
Enquanto a China continua a considerar Taiwan como parte do seu território e os assuntos taiwaneses como assuntos internos chineses, a Presidente Tsai Ing-wen estreita os contactos com os EUA para reforçar a aliança resultante do acordo de defesa mútua, assinado em 1954, e que é fundamental para manter a independência da ilha face ao regime chinês.
Taiwan, com a China por perto e o Japão não muito longe, situa-se numa área geográfica estratégica para os dois países, pelo que, ao longo da sua história de quase cinco séculos, foi subjugada, ora por um, ora por outro, embora principalmente pela China. É, por isso, compreensível o receio mundial, quer diante da posição da China, quer em face do papel dos EUA que já prometeram defender Taiwan se a China atacar a ilha.
A tensão é grande. Depois do apoio, legítimo, do Ocidente à Ucrânia, uma intervenção dos EUA em Taiwan, ainda que decorrente da lógica aliada, pode ser o gatilho do alastramento do conflito, que opõe a Rússia à Ucrânia, à escala mundial. Essa é uma possibilidade que o mundo civilizado tem de evitar, estando atento a todas as peças do tabuleiro geopolítico, mas, especialmente, às ambiguamente neutrais.
A China, com a sua ambígua neutralidade, joga o seu futuro nesta guerra na Ucrânia. Num mundo em mudança, sonha com um poder geopolítico mais determinante. A ver vamos como evolui a situação mundial, mas a diplomacia entre países aliados, as demonstrações de força dos Estados, as provocações entre Estados, a fuga de documentos secretos de espionagem americana a países aliados e à própria Ucrânia, recomendam vigilância. Se não quisermos ser apanhados de surpresa. Só isso, porque nada podemos fazer quanto à matreirice em que se apoia, atualmente, o sistema internacional.
As nações olham-se, frente a frente, em encontros diplomáticos, estabelecem acordos, celebram protocolos, anunciam ações conjuntas, mas, depois, a fuga de documentos secretos, como a que acaba de acontecer nos EUA, coloca, na praça pública, atos de espionagem a nações amigas, planos secretos que colocam em risco esses países e os seus altos dirigentes, mostrando que o rei vai nu.
Já Maquiavel nos avisava que os governantes indecisos, para escaparem aos perigos do presente, escolhem, na maioria das vezes, o caminho da neutralidade, e, por norma, precipitam a própria ruína. Talvez valha a pena pensar nisto, no papel do Ocidente na guerra da Ucrânia e no jogo político da China nesta guerra. No fim de contas, não
estaremos todos a tentar escapar aos perigos do presente enquanto milhões de ucranianos estão refugiados em toda a Europa, deslocados em regiões da Ucrânia onde a guerra tem feito menos vítimas, deportados para as regiões ucranianas ocupadas pela Rússia ou para a própria Rússia? É preciso pensar nisto e tomar partido - o da paz - sem ambiguidade nem neutralidade.
* Historiadora (HTC - CFE - Nova FCSH)