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Pode aceitar-se que existam territórios e povos onde, pela geografia, pela História, pela cultura e pela tradição, não seja possível a democracia (pelo menos a curto ou médio prazo) e não possa aplicar-se a nossa concepção de direitos humanos? Pode aceitar-se (não é o mesmo que concordar ou "compreender") que, por nascerem num certo país, as mulheres não possam estudar, sejam consideradas seres inferiores (ou quase não-seres) e se sujeitem às mais terríveis consequências se, porventura, recusarem este estatuto de servidão?
O Afeganistão talvez seja um dos casos em que este tipo de dúvida se poderá colocar com mais pertinência.
Todos ou muitos se recordarão que, na sequência dos ataques do 11 de Setembro, os Estados Unidos e outros países intervieram com as suas forças militares no Afeganistão, derrubaram o regime talibã, escorraçaram a Al-Qaeda e transferiram depois para a esfera (principal) das Nações Unidas a tarefa política de transformar o país.
Mais de doze anos depois, os resultados são quando muito medianos, não faltando quem considere que, mais tarde ou mais cedo, o Afeganistão está condenado a ficar outra vez nas garras dos talibã. O esforço militar é imenso, a despesa imensa é, e a verdade é que a sensação é a de tentar agarrar a água do mar entre os dedos. Os talibã, veja-se lá, até já "negoceiam" com os Estados Unidos, vendo-se reconhecidos como "parte" num diálogo e "parte" no futuro do Estado.
Em Cabul, cada vez menos segura, vai-se vivendo cada dia. E ali, entre outros, encontrava-se um reduto de coragem, um sítio onde quem lá mandava nunca permitiu que o medo desse ordens. Esse sítio não era um quartel, não era uma fortaleza. Era um restaurante, o "Taverna du Liban". Ali, contou-me quem já por lá andou, estava-se bem. E conta-nos a jornalista Lyse Doucet que se comia o melhor bolo de chocolate de Cabul e a melhor comida libanesa. O dono, Kamal Hamade, libanês, estava ali e dali não saía, quaisquer que fossem os riscos (porque muitos estrangeiros o frequentavam). Sendo libanês, podia falar de sofrimento, podia com autoridade falar do seu próprio País, outrora pacífico e uma das joias felizes do Médio Oriente. Kamal escolheu o Afeganistão. E terá suposto que, com as medidas de segurança necessárias, nem a canalha talibã o poderia atingir.
Foi agora. Um ataque suicida talibã contra as portas blindadas do restaurante abriu brechas, por onde entraram dois homens que traziam a morte e que dispararam sobre quem viam mexer. Ali morreram mais de duas dezenas de pessoas, a maioria estrangeiros, entre os quais Wabel Abdallah o chefe da delegação do FMI no Afeganistão, também libanês, e vários funcionários das Nações Unidas. Kamal Hamade morreu. Pelo que se sabe, de armas na mão, a defender os seus clientes e aquele espaço de normalidade num País onde o normal, infelizmente, é a excepção.
Com a destruição do "Taverna du Liban", com as vidas que ali se perderam, os talibã marcaram pontos, porque para além das mortes atingiram um símbolo. Vamos ver o que será o ano de 2014 no Afeganistão. Mas dificilmente poderia ter começado de forma mais triste.