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1. Num texto da prosa inédita que não tenho aqui à mão, Fernando Pessoa afirma que Lisboa é o lugar mais provinciano de Portugal. O poeta, ainda que nascido no Hemisfério Sul, é um lisboeta, ali viveu a sua vida, não era dado a longos passeios nem se terá apaixonado, que se saiba, por qualquer outro lugar real. Lisboa frente ao estuário do Tejo é a sua terra, a referência de que parte para designar as outras. Na poesia, através dos desdobramentos da personalidade autoral que ele próprio crismou como "heterónimos", dá-lhes um nome - a minha aldeia: "O Tejo é mais belo que o rio que corre na minha aldeia / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre na minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre na minha aldeia". A perspetiva ordena e hierarquiza o espaço a partir de um ponto predeterminado. Quando, na prosa, chama provinciana à cidade que habita, o que Fernando Pessoa pretende é precisamente subverter essa ordenação prefixada, inverter a sequência, escapar à subordinação hierárquica subentendida para alcançar um outro olhar que possa expandir a perceção daquilo que quer ver.
2. Fernando Pessoa nunca estudou a administração do território nem se ocupou da descentralização, da participação democrática e do poder local. O poeta busca outros ângulos de observação, rasgar horizontes, descobrir o que se esconde e se revela no vislumbre de um olhar diverso. Enfim, o provincianismo lisboeta que deplora é um mote espirituoso que nos serve para ver e reinterpretar a paisagem física e humana que mora por dentro das nossas fronteiras externas. A tragédia dos incêndios de 2017 e a crise pandémica do ano corrente exibiram a obscenidade do atavismo centralista e do cosmopolitismo provinciano que ferozmente armadilharam todas as tentativas de criação das regiões administrativas no território continental, prometidas em abril de 1976 e plasmadas no texto da nossa Lei Fundamental.
3. O desenvolvimento e a aplicação generalizada das novas tecnologias contribuiu para expor ainda com maior crueza o absurdo centralista que subordina a totalidade do país, até para a resolução das questões mais irrisórias, à decisão suprema da cúpula político-administrativa sediada na capital de um império há muito extinto. Do controlo sanitário de um lar da Misericórdia atingido pela covid-19, em 2020, à reconstrução de uma casa consumida pelo fogo no outono de 2017, do combate aos incêndios florestais à distribuição local dos testes do vírus, tudo depende da omnisciência do poder central sem que à escala da região alguém detenha autoridade para assumir responsabilidades em nome dos cidadãos que o elegeram, coordenar e articular esforços, expiar os fracassos e partilhar os sucessos. Não podemos deixar esmorecer o ímpeto descentralizador do atual Governo. O vírus centralista espreita, pronto a atacar!
*Deputado e professor de Direito Constitucional