O rodízio dos cortes
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Os desafios persistem em Portugal. Esta é a mensagem com que a troika se despede das avaliações regulares, justamente no término do 12.º e último exame, que deverá encerrar um programa de assistência de quase três anos. Descodificando, o recado deixado pelos nossos credores recorda que as reformas de fundo não foram feitas. E se dúvidas houvesse, aí está o Documento de Estratégia Orçamental (DEO), que reflete bem uma lógica de circulação de cortes em que se viciou este Governo.
Esperar-se-ia uma estratégia para a condução das finanças públicas assente em reformas de facto, devidamente multiplicadas por uma carteira de medidas coerente, transparente e sustentável para os seus destinatários, a saber os cidadãos e as empresas. Falo de reformas que reequacionam ou reinterpretam os mecanismos de criação de riqueza e a sua tributação, aplicando-lhe depois um modelo de redistribuição que potencie os grandes objetivos da nação, a começar pela qualidade de vida das pessoas, passando necessariamente pelo crescimento da economia e, por fim, atenuando a dívida entretanto acumulada.
Este é um caminho difícil, bem o sabemos, para o qual o Governo dispôs de uma legislatura. Ao invés de reformar no sentido de promover a libertação de dividendos orçamentais, o primeiro-ministro e a sua equipa desenvolveram um rodízio de cortes e aumentos de impostos que mais parece um daqueles puzzles que, com as mesmas peças, permite construir diferentes imagens. Há muita ideologia nesta abordagem, já que tem uma linha condutora que é reduzir o Estado, penalizar os cidadãos, com uma especial apetência para pensionistas e funcionários públicos, e proteger alguns interesses instalados. Mas há também muita impreparação e, mais grave, uma latente má intenção bem visível nos sucessivos jogos semânticos e violações da verdade que ofendem a inteligência dos portugueses.
E como funciona o rodízio dos cortes e dos aumentos? Extingue-se a CES, cria-se a taxa de sustentabilidade. Devolve-se parte dos salários da Função Pública, aumenta-se a ADSE, a TSU e o IVA. Prometem-se ganhos nos gastos intermédios da administração central, mas não se explica como se fará em 2015 aquilo que podia ter sido feito e não se fez em 2014 e anos anteriores. De caminho, mantém-se a parte de leão dos cortes salariais no público. O paradigma expressa-se bem pela criação das taxas sobre a indústria farmacêutica e sobre o consumo de produtos nocivos: taxa-se o que faz bem e o que faz mal à saúde, ou seja, taxa-se tudo.
Quando em 15 de abril, após a reunião extraordinária do Conselho de Ministros, a ministra das Finanças afirmou peremptoriamente que "não haverá aumento de impostos em 2015", os portugueses ter-se-ão sentido aliviados. O ministro da presidência, Luís Marques Guedes, reforçou a boa nova. Mas Paulo Portas e Pires de Lima, representando a ala direita do Governo, foram ainda mais longe, sugerindo que o alívio da carga fiscal seria um objetivo para 2015. A verdade é que o DEO trouxe à luz novos aumentos de impostos. Marginais, diz agora o Governo. O problema é que são uma espécie de cereja no topo do bolo, uma vez que acrescem a um brutal agravamento da carga fiscal protagonizado pela maioria PSD/CDS desde 2011.
Dos políticos espera-se verdade. É insultuoso para os portugueses e indigno para a democracia ver um vice-primeiro-ministro dizer, com todo o descaramento, que a subida de 0,25 pontos no IVA e 0,2 pontos na TSU não é aumento de impostos.
O primeiro-ministro, por sua vez, afina pelo mesmo diapasão. Ainda em março dizia na Assembleia da República que não se regressará aos salários de 2011, bloqueado no seu manual da austeridade. A verdade é que o DEO aí está a propor a reversão dos cortes num horizonte de cinco anos. À porta de eleições, Passos Coelho atira-se ao populismo que tanto diz rejeitar e, na passada, empurra o problema dos salários da Função Pública para a próxima legislatura.
É caso para dizer que a tirada "que se lixem as eleições", com que o primeiro-ministro brindou o país em tom épico no verão de 2012, foi agora substituída pelo alerta "atenção às eleições".