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Começou um burburinho no café, elas as senhoras habitués a acotovelarem-se umas às outras, sedentas não sabia eu de quê. E a murmurarem. E então o café esvaziou-se, surgindo pouco depois, nas ruas de Campo de Ourique, pessoas com despojos nos braços: livros, bibelots, pratos, revistas antigas, tecidos, roupa – e até uma velha senhora segurando um bouquet de sapatos que lhe chegava até ao queixo.
Fui investigar. Na esquina próxima do café, no prédio onde vivi muitos anos, dezenas de caixas de cartão, abertas e empilhadas, deixavam os seus tesouros à mostra. Era o recheio de um apartamento fechado há mais de trinta anos. As caixas aguardavam a carrinha que as despejaria na lixeira.
Apercebendo-se disto, começou a depredação. As habitués do café deram o exemplo, de roda da carcaça a picar a picar, depois vieram outros. Uma mãe levou despojos no carrinho do seu bebé, um homem braçadas de livros apodrecidos, uma mulher uma trouxa de loiça prestes a quebrar-se-lhe nas costas, um homem bengalas enferrujadas, uma rapariga satisfeita com um único copo onde se via um querubim em marca-de-água. E até alguém explicou: “A minha patroa disse vai lá buscar.” Vorazes, alimentavam-se da pilha, mexiam e remexiam, derrubavam, e cada um comia a parte mais tenra, as peças mais saborosas.
“Ai, valha-me Deus”, disse um dos saqueadores quando o responsável pelas mudanças, farto da multidão que impedia a passagem pelo passeio, preocupado com o manusear, disse que era preciso ter calma, fazer as coisas com cabeça, levar o que os senhores quiserem sem estorvo. “Você aí, para onde vai com esse candelabro?” E você aí lhe respondeu: “Vamos arrumar para não fazer bagunça”.
As caixas esvaziavam-se dos seus quilos de recheio, sumia-se repartida a história de uma vida. Eu observava e sentia-me enfeitiçar pela pilhagem, que era o passado feito futuro: eu bem via as caras dos saqueadores transfiguradas em satisfação. Até as velhas mulheres descobriam as forças que não tinham para levar dali os tesouros com cheiro a bolor antes que chegasse a carrinha do lixo.
E estava quase a pôr a mão a um Santo António quando me lembrei da Bubulina, a minha Bubulina do filme “Zorba, o Grego”. Lembrei-me dela agonizante na sua casa solitária cheia de tesouros. Dela febril, respirando com dificuldade. A caminho a caminho. A minha Bubulina porque são nossos todos os doentes. E então morreu, no filme morreu realmente, e as velhas gregas que cirandavam sabendo-a moribunda, essas viúvas-corvos irromperam pelas salas para lhe levarem o recheio, para rasgarem as cortinas, abrirem as gavetas, arrecadarem a loiça e dispersarem os livros. Não sobrou nada.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia