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Com a inocência que só uma criança sabe demonstrar, a Matilde contou-me que, no Carnaval, as fatiotas que tinham feito maior furor entre os colegas da turma tinham sido as dos meninos vestidos à menina. Rapazes de nove anos de lábios pintados, de peruca e de saia. Sem complexos. Divertiram-se eles, divertiram-se os outros rapazes que se meteram com eles, divertiram-se as amigas imitadas nos trejeitos por eles. Não houve anormalidade ou desvio. Apenas crianças a serem crianças. Não é por brincarem com bonecas que os rapazes veem ameaçado o seu projeto de masculinidade, como também não é por jogarem vigorosamente à bola no recreio que as meninas deixarão de ser mulheres que transbordam feminilidade. As convenções sociais aplicadas aos menores resultam quase sempre em imposições de adultos que os incomodam mais a eles do que às crianças.
Vem isto a propósito do mais recente assomo de indignação de gente crescida motivado por uma suposta "discriminação por género" patrocinada pela McDonald"s na distribuição dos brinquedos que acompanham os Happy Meal, caixinhas coloridas que acomodam alimentos fritos com milhares de calorias, além dos ditos brinquedos.
Ora, a multinacional norte-americana não está confortável por haver póneis para meninas e robôs para rapazes. Por haver a tal "discriminação por género" . Nem está satisfeita com um inquérito pueril - a que provavelmente nenhum miúdo responde - onde, entre outras, a palavra "culinária" surge associada às raparigas e a palavra "força" aos rapazes. Por isso, vai mudar as regras, aproximando-as do modelo norte-americano: haverá apenas brinquedos. Indiscriminados. Isto apesar de, no atual formato, eles e elas poderem escolher livremente o brinde que lhes apetecer.
A secretária de Estado da Igualdade, Catarina Marcelino, aplaude o avanço civilizacional: "Obviamente não podemos concordar com essa discriminação", afirmou ao Diário de Notícias, garantindo que a Comissão para a Igualdade do Género vai andar de olho nos brindes da McDonald"s, empresa que só pode estar-lhe grata, na medida em que vai poder poupar na gama de ofertas. Espanta-me ter um Governo que se preocupa mais com os objetos com que as crianças brincam do que com os alimentos que ingerem. Só espero, agora, é que a mesma Comissão instrua as multinacionais da moda a abdicarem de vender roupa para rapazes e para raparigas; que obrigue todos os estabelecimentos a prescindirem de casas de banho que discriminem por género; e que torne bem claro junto das câmaras municipais que as piscinas públicas devem passar a ter apenas balneários mistos.
No final, além de umas boas gargalhadas, ganharemos uma sociedade assexuada e crianças orientadas para brincar da forma correta. Se não formos nós a cuidar delas, quem cuidará?
EDITOR-EXECUTIVO-ADJUNTO