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É hoje que confesso o que nunca esperei ter de confessar. Quando, há cerca de duas décadas, comecei a fazer jornalismo, fui praxado (não divulgo os nomes dos praxantes, porque não sou bufo). Obrigaram-me a beber shots de absinto (uma bebida destilada que chega a ter 90% de álcool) até cair. Nunca mais fui o mesmo.
Anteontem, uma jovem que comanda, certamente com muito jeito, a associação académica da Universidade do Algarve levou este exemplo ao "Prós e Contras" para explicar o seguinte: parvoíces comparadas às praxes mais idiotas e hediondas também se cometem noutras áreas.
Trago o caso para aqui com o singelo objetivo de dizer o seguinte ao leitor que, porventura, não tenha visto o programa: com raríssimas exceções, o debate andou por este nível. Isto é: entre o -1 e o 0 absoluto. Não me lembro de ter ouvido um aluno ou um representante académico com pensamento estruturado e linguagem que se entenda. Ou os que pensam a sério decidiram ficar calados, para não serem vaiados pelos talibãs da plateia, ou fui eu que tive azar e não assisti às partes interessantes.
Parecendo pouco, isto quer dizer muito. Quer dizer que, por estar tão metida no seio das academias há tanto tempo, a praxe, violenta ou integradora (belo termo!), é dado adquirido. Não se discute. É uma verdade incontestada e incontestável. Enorme perigo vem das coisas que deixam de ser discutidas, apesar de mexerem no mais decisivo direito das pessoas: a sua liberdade.
Há quem esconda o que a praxe realmente traduz, quando sai da mera brincadeira, no palavrão "integração". Até reitores e diretores de escolas superiores acham que a praxe pode ser "integradora". Acredito que, há três ou quatro décadas, pudesse sê-lo. Mas hoje, numa altura de comunicação e interação aceleradas, são as praxes que promovem encontros e amizades para a vida? São os designados gabinetes de receção aos caloiros que os ajudam a preencher papéis e a indicar onde é a secretaria e onde estão os lavabos?!
A praxe transformou-se num ritual violento e humilhante, numa coisa execrável que serve para obedecer hoje na expectativa de comandar e abusar dos pares amanhã, no nivelamento por baixo, no afastamento e, às vezes, na perseguição de quem não quer ser "integrado". A praxe é a cobardia levada ao seu paroxismo. A praxe não edifica. A praxe estupidifica.
Em si mesma, a praxe não tem defesa, porque não é possível definir a regra e esquadro a linha onde acaba a brincadeira e começa o abuso. A menina do Algarve, por exemplo, acha que, quando praxa, pode estender o braço até tocar o nariz do praxado. Não pode. Nem mesmo com a "ajuda" de shots de absinto.
P.S.: Nunca fui praxado no jornalismo, nem nunca me deixei praxar na faculdade. E detesto absinto.