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O Natal é como tudo na vida. Tem coisas boas e coisas más, coisas que não são boas nem más (antes pelo contrário), e coisas que dão para os dois lados e são ao mesmo tempo boas e más, como é o caso dos excessos que quase todos cometemos à mesa ontem à noite.
Não seria cristão resistir ao apelo ao abuso do tinto feito pelo bacalhau cozido com batatas, ovo, cebola, grelos, cenoura e nabo. E teria sido uma imperdoável falta de respeito pelas cozinheiras não provar todas as sobremesas, as rabanadas e os sonhos, mas também os deliciosos bolos de bolina, que casam na perfeição com um tawny de 20 anos.
O Serra a esparramar-se pelo prato é irresistível, apesar de equivaler a um chuto de colesterol diretamente administrado na veia, mas caramba!, um dia não são dias, estamos na época dele e a sua liturgia proporciona sempre uma boa discussão.
Deve-se fatiar o queijo ou abrir-lhe uma tampa e comê-lo à colher? E o melhor é empurrá-lo com um tranquilo do Douro, com um vintage (ou até um honesto rubi), ou com um branco velho, com muita madeira, como sugere o João Paulo Martins, que é um dos maiores especialistas vivos em matéria de vinhos?
O Natal tem coisas boas e más. É dos livros. E as coisas boas fazem mal, engordam ou são inconstitucionais. Podem mesmo fazer o pleno destes três terríveis pecados. Mas temos de relativizar o assunto e não stressar, porque isso faz logo subir a tensão arterial. Dantes, diziam mal do azeite e agora só falta venderem-no nas farmácias. E à luz da Constituição de 1933, não houve coisa mais inconstitucional do que o 25 de Abril e a descolonização.
O Natal também tem coisas chatas, como o temporal torrencial de mails e SMS absolutamente impessoais (a mesma mensagem é enviada indiscriminadamente para toda a lista de contactos), a que me recuso a responder, pois a minha etiqueta particular recomenda que apenas dê troco a desejos de bom Natal personalizados.
Este Natal tem uma coisa particularmente aborrecida, que é o tempo, que está horrível. O vento pode ser bom para as eólicas e a chuva para a agricultura. Mas ambos, juntos ou isolados, são inimigos do dia de Natal ideal, frio mas ensolarado, que convida a esmoer os excessos da véspera em longos passeios junto ao rio e ao mar, vestidos com a roupa nova que tivemos no sapatinho.
Como a agrura do tempo nos obriga a ficar acantonados no interior das nossas casas, impedindo-nos de exercitar os músculos das pernas, sugiro que exercitemos as celulazinhas cinzentas, refletindo em todas as vertentes da mensagem de Natal, incluindo o apelo à reciclagem dos restos e combate ao desperdício consubstanciado na roupa-velha de hoje ao almoço.
E despeço-me com uma pequena confidência. Sabem que estive quase a escrever ao Pai Natal a pedir-lhe que trouxesse de prenda ao Tribunal Constitucional um quadro figurativo, muito movimentado e pintado em cores vivas, do Carlos Carreiro, para substituir aquela tapeçaria do Batarda, a preto e branco, tal qual a cor das togas e da pele dos juízes, e assim quebrar a sorumbática monotonia (cromática, mas não só) das conferências de Imprensa de Sousa Ribeiro e companhia?