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O presidente da República ensaiou ontem uma tentativa falhada de não comentar o facto que abalou o dia: parece que o seu principal assessor, supostamente a mando do chefe de Estado, "vendeu" a um diário a famosa estória segundo a qual o Governo andava a escutar as conversas de Belém. Por que razão falhou a tentativa? Porque, dizendo que não queria pronunciar-se sobre a delicada matéria em causa, Cavaco Silva efectivamente comentou-a. Fez bem ou fez mal?
O tom e a pose tensas do presidente da República, na altura em que foi confrontado pelos jornalistas, diz tudo sobre o melindre do assunto. Na substância, o que Cavaco Silva fez foi isto: deu cobertura ao seu assessor e lançou uma gravíssima suspeita sobre os serviços de segurança portugueses, ao dizer que, quando se conhecerem os resultados das eleições legislativas, ele tratará de "obter informação" sobre os ditos. Tradução: o presidente da República subscreveu sem hesitação a tese dos que vêem nesta trapalhada o dedo dos serviços segurança portugueses.
"Deixemos passar as eleições e, depois, eu tentarei, naturalmente de uma forma discreta, como costumo fazer, obter informações sobre questões de segurança", declarou o chefe de Estado. Isto é: Cavaco suspeita que os ditos serviços estão a ser usados a favor de alguém para a guerrilha política.
Suspeita. Esta é a palavra-chave. O presidente da República suspeita há, pelo menos, 17 meses (altura em que o conflito com o Governo em torno do Estatuto dos Açores atingiu o seu ponto mais alto) que está a ser espiado. Isto não é suficientemente grave para que o chefe de Estado elucide os portugueses sobre a matéria, quando um dos seus assessores se vê envolvido na polémica? Isto não é suficientemente grave para que Cavaco Silva diga se mantém, ou não, a confiança no seu assessor?
Resposta do presidente da República: é grave, mas, agora que estamos no meio de uma campanha eleitoral, não cabe discutir uma campanha negra. Seria prejudicial e insuportável. Seria?
O que é verdadeiramente insuportável é a continuação deste clima de suspeição entre dois dos principais órgãos de soberania nacionais. Viver num país em que um chefe de Estado desconfia do Governo - e parece desconfiar, na exacta medida em que não desmentiu nenhuma das notícias sobre a matéria - roça o delírio. Acresce que, como é evidente, a campanha ficará marcada, nos próximos dias, pelo evento. A prudência do presidente não evitará o "follow up" dos media. Eis porque a opção de Cavaco é a pior de todas: ela permite que possamos pensar tudo sobre todos os intervenientes. O papel do presidente não deve ser o de adensar a confusão, mas sim o de a esclarecer. Sobretudo quando tem dados para isso. O seu estratégico silêncio é, por isso, ensurdecedor.