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Comecemos pelo conceito porque são mais de semântica e menos de direito as razões que levaram o Tribunal Constitucional (TC) a rejeitar a lei que regulamenta o acesso à morte medicamente assistida - isto apesar de reconhecer que o "direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias". O diploma (Decreto n.oº23/XV) aprovado no Parlamento caracteriza "sofrimento de grande intensidade" como o "sofrimento físico, psicológico e espiritual, decorrente de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema, com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa".
Parece claro, só que não. O acórdão n.º 5/2023 do TC - aprovado por sete contra seis votos - questiona a "intolerável indefinição" do conceito de sofrimento. Em concreto, se a exigência de sofrimento físico, psicológico e espiritual deve ser "cumulativa" ou "alternativa". Ou seja, se para ter acesso à eutanásia basta uma das condições ou se é preciso padecer de todas em simultâneo. Para a maioria dos juízes do Palácio Ratton, não chega ser de "grande intensidade", "permanente" e "intolerável". O importante é clarificar o uso da conjunção aditiva ("e") ou a sua substituição por uma conjunção alternativa ("ou").
Numa declaração que arrasa a decisão maioritária, quatro dos juízes que votaram vencidos (Mariana Canotilho, António José da Ascensão Ramos, Assunção Raimundo e José Eduardo Figueiredo Dias) consideram que esta questão é "irresolúvel", até porque o conceito de sofrimento é um "estado holístico" e "dificilmente se presta a uma definição cabal". Mais: o acórdão conduz a uma "manifesta injustiça" e é de uma "incompreensível deslealdade" entre órgão de soberania, referindo-se ao Parlamento, que já aprovou a lei três vezes e que agora tem de a reformular. Outra vez.
Para um outro juiz da fação minoritária (José João Abrantes), as "dúvidas interpretativas suscitadas" sobre a tipologia de sofrimento são "manifestamente insustentáveis" e não se confundem com um "juízo de inconstitucionalidade".
A divisão entre os juízes conselheiros quanto à relevância da questão semântica para o chumbo da lei levanta dúvidas legítimas se o diploma que legaliza a morte medicamente assistida está, de facto, ferido de inconstitucionalidade ou se a decisão do TC está ferida de ideologia. A única certeza é que o direito a uma morte digna para todos os que vivem em "sofrimento de grande intensidade" - seja físico, psicológico e/ou espiritual (a conjunção é irrelevante para quem sofre) - continua adiado.
*Editora-executiva-adjunta