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Chamam-lhes "sonhadores". São as crianças e jovens que entraram ilegalmente nos Estados Unidos em busca de refúgio, na esperança de encontrar uma oportunidade de trabalho, construir o futuro que a terra natal lhes negava e realizar os seus sonhos. Muitos deles foram juntar-se a familiares que os acolheram. Há cinco anos, o Presidente Obama aprovou a DACA - Deferred Action Childhood Arrivals" - um programa destinado a proteger estes jovens imigrantes em situação irregular, da ameaça de expulsão imediata. Trata-se de um quadro legal que estabelece um regime transitório que lhes permite estudar, inscrever-se na segurança social, trabalhar, obter uma carta de condução. Na terça-feira, o procurador-geral, Jeff Sessions, anunciou o fim deste programa e o sonho americano converteu-se de súbito num pesadelo para os cerca de 800 000 sonhadores - entre os quais se contam inúmeros jovens portugueses - que são abrangidos pela revogação da lei e ficam por isso na iminência de ser repatriados para os países de origem que tinham abandonado na infância. Segundo o "New York Times", o procurador-geral justificou a decisão afirmando que esse programa tinha roubado postos de trabalho a centenas de milhares de americanos "permitindo que esses mesmos estrangeiros ilegais" os ocupassem. E veio também o próprio Donald Trump dar testemunho da sua alegada preocupação com "os milhões de americanos que se tornaram vítimas deste sistema injusto"!
A decisão suscitou de imediato os mais vivos protestos vindos de todos os quadrantes sociais e políticos, inclusive, das fileiras do Partido Republicano. O antigo Presidente Barack Obama resolveu quebrar o silêncio a que se tem remetido para denunciar a revogação da lei como sendo uma decisão "errada" e "cruel" - "não temos o direito de ameaçar o futuro destes jovens que não fizeram mal a ninguém, que não representam nenhuma ameaça, que não nos tiraram nada". Mas para Donald Trump pouco contam os valores e as fantasias com que se teceu o "sonho americano". Sem rebuço, perdoou a pena de seis meses de prisão a que foi condenado o seu amigo e fervoroso apoiante, Joe Arpaio, ex-sheriff do condado de Maricopa, no Arizona, por reiterada desobediência às ordens do tribunal. Trump alegou que o sheriff se limitou, com zelo exemplar, a "fazer o seu trabalho"! Na verdade, Joe Arpaio foi repetidamente intimado pelo tribunal a pôr termo à perseguição sistemática de latino-americanos e de africanos, detidos com o pretexto de serem suspeitos de imigração ilegal. Submetia os reclusos em prisão preventiva a condições brutais e desumanas. Impunha-lhes trabalhos forçados. Servia-lhes alimentos estragados. Encerrava-os numa construção precária que designava como "campo de concentração", onde suportavam temperaturas elevadíssimas. Muitos deles não sobreviveram a tão extremas condições. Como refere a revista "Rolling Stone", o condado de Maricopa enfrentou por isso numerosos processos judiciais e foi condenado a pagar avultadas indemnizações aos familiares das vítimas. Contudo, entrevistado pelo "Guardian", o antigo sheriff agora agraciado com o perdão do Presidente, respondeu: "Mas ainda que fosse um campo de concentração, que diferença faz? Eu ainda estou vivo e continuei a ser reeleito!". Do sonho, enfim, não restou mais que uma terrível caricatura.
Para quem não tinha ainda despertado para a crua realidade, a eleição de Donald Trump, entre muitos outros sinais de perigo, assinala não só o fim do "sonho americano" mas também a irremediável decadência do país mais rico e poderoso do Mundo. Na Europa, ninguém o entendeu melhor que a chanceler alemã, Angela Merkel, como se revela quer na distância higiénica que soube preservar perante o novo Presidente, quer na prudência dos seus pronunciamentos sobre a Coreia do Norte. Para enfrentar as imprevisíveis tempestades que o futuro nos promete, precisávamos de mais e de melhor Europa. A Alemanha não chega.
* DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL