Corpo do artigo
A solução governativa que hoje está instalada em Portugal tem a virtualidade de nos fazer regressar à política. Basta ver o assanhamento que a questão do subsídio público a algum ensino privado trouxe para o debate para podermos constatar como eram exageradas as notícias de que a estreiteza das margens orçamentais havia esbatido, de uma vez por todas, as fronteiras entre Esquerda e Direita, pela imperativa imposição de um único caminho.
Já passei a fase em que alimentava o quotidiano com esse tipo de disputas, até porque, desde há muito, aprendi que há bastante mais vida para além das ideologias. Mas acho saudável que, mesmo com alguma inevitável demagogia à mistura, se abra um debate em termos de opções em matéria de políticas públicas. Considero que é um estímulo para abanar a anomia cívica que por aí anda promover um bom combate de ideias.
Este Governo tem aberto a porta a que, pela primeira vez desde há muito tempo, algumas premissas, dadas como assentes no pensamento que domina o "mainstream" da nossa política, tenham sido cruzadas por interrogações. Sou crítico de algumas das agendas "fraturantes" que o Bloco tem vindo a colocar sobre a mesa. Não tanto por objeções quanto à sua razão de fundo, mas muito mais por um juízo negativo sobre a sua oportunidade, face a uma opinião pública que pode ter alguma dificuldade em achá-las conformes com a hierarquia da sua agenda de preocupações. Porém, tenho de reconhecer que, sem essa pressão "à esquerda", o PS português dificilmente abandonaria o espartilho de "neutralização" ideológica em que caminhava e que hoje marca muita da social-democracia europeia.
Há, contudo, duas grandes questões a que só o futuro responderá e ambas se interligam. A primeira é saber se a adoção, cada vez mais evidente, de uma governação política mais à esquerda irá, ou não, alienar setores do tradicional eleitorado socialista, ao mesmo tempo que os louros dessa deriva progressista são colhidos pelos seus parceiros. A segunda questão é o "teste do algodão", isto é, se, no final de contas, a "geringonça" funciona ou não, naquilo que verdadeiramente interessa e que não é tão pouco como isso: retoma do crescimento, redução do desemprego, melhoria significativa da condição de vida dos mais pobres, sustentação das políticas públicas essenciais, enfim, um Estado social eficaz com o bem-estar das pessoas no seu centro.
Para já, perante alguma inevitável perplexidade face aos números económicos que por aí surgem nas últimas horas, sigo a velha regra que adoto nas viagens aéreas, em ocasiões de turbulência: olho para a cara das hospedeiras. E, até ver, António Costa continua a sorrir.