<p>O cenário é implacável, a pobreza evidente. Mas o sorriso de Ana Rita, de seis anos, parece inabalável. Ainda acredita que tudo é possível. É ela quem segura, com carinho, o queixo da irmã mais velha, Soraia, de 12 anos, incitando-a a esquecer a vergonha e a levantar a cabeça perante a adversidade. A mãe, Maria de Lurdes, 38 anos, observa o gesto, que subscreve. Uma imagem que nos prende à história que se conta em redor, na página de jornal. Uma história de pobreza, mas também de esperança. Uma história que nos consegue arrancar um sorriso. Ainda que seja um sorriso triste.</p>
Corpo do artigo
Não seria essa a intenção, mas esta passou a ser também uma história sobre a importância do Estado no apoio aos mais pobres e sobretudo na criação de mecanismos que permitam contrariar o ciclo de pobreza. Particularmente sobre a importância do Rendimento Social de Inserção. Porque é também graças aos 460 euros que esta família recebe, todos os meses, que Ana Rita ainda consegue mostrar o seu sorriso irresistível.
É com esses 460 euros que Maria de Lurdes consegue dar às três filhas "um bocadinho de vida". E é com o programa que lhe está subjacente que espera concluir, em breve, o nono ano de escolaridade e, mais tarde, o 12.º ano. "Não quero viver do Rendimento", garante mais uma vítima da nossa crise endémica e do desemprego que lhe está associada [não confundir com esta espécie de farsa, que atinge as bolsas e os bancos, que a conjuntura nos impôs, mais uma vez, por estes dias].
Esta é igualmente uma história que nos mostra as condições de habitação miseráveis em que ainda vivem muitas famílias e muitas crianças portuguesas. E um exemplo de como o investimento do Estado e das autarquias na habitação social passou demasiadas vezes ao lado de quem merece e de quem precisa. Muita inauguração, muita pompa, muita propaganda, pouco proveito. Muitos milhares de cidadãos com bons empregos e bons salários que foram beneficiados com casas de quase luxo em Lisboa, para outros tantos que sobrevivem em condições desumanas em tugúrios como o que alberga Maria de Lurdes, Soraia e Ana Rita.
Soraia tentou resistir à fotografia, à exposição pública da miséria em que vive. A mãe insiste: "Precisamos de mostrar as condições em que vivemos". Soraia explica, com desarmante complexidade: "Mas eu não quero que o Mundo veja". Ana Rita levanta-lhe o queixo com a mão. Só tem seis anos, mas talvez tenha percebido que é bom que o Mundo veja. O seu sorriso também é uma acusação.
Nota: A história que se refere na crónica foi escrita por Maria Cláudia Monteiro, fotografada por Adelino Meireles e publicada na edição do JN da passada sexta-feira.