Vestiu peles sem conta em palco. Chorou, despertou lágrimas, sorriu, acionou gargalhadas.
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Quando despia a identidade camaleónica de atriz, emprestava a serenidade de uma alma única ao discurso, tão limpo, tão simples, tão coerente, palavras de quem quase não precisa de falar para se perceber que sabe tudo. Eunice Muñoz deixa-nos muitas mensagens. Cada um escolherá a sua. Destaco estas palavras: "Gosto demasiado da vida para me zangar com ela".
Nos tempos sombrios que atravessamos - de combate à pandemia e de guerra em território europeu -, é fundamental admitir os medos sem medo, como Eunice Muñoz assumia sentir sempre que era chamada à cena, apesar da carreira ímpar que construiu poder indicar o oposto. Esta honestidade descontraída e responsável faz tanta falta à sociedade como Eunice Muñoz à Cultura portuguesa. Mas nem sempre conseguimos reconhecer as próprias fragilidades. Barreiras, por vezes inconscientes, de arrogância e vergonha, impedem-nos de o fazer.
Conseguir estar perante a vida de uma forma tão simples talvez seja a tarefa mais exigente que uma pessoa pode encontrar. E terá sido decisiva no trajeto de Eunice Muñoz, porque ninguém consegue atingir aquele nirvana da representação sem ter um coração translúcido.
Além de continuarmos a consumir o tremendo legado cultural, aproveitemos esta perda irreparável para refletir através do seu exemplo superlativo. Há um mundo inteiro a sofrer à nossa volta, todos os dias somos fustigados por essa realidade. E Eunice Muñoz, vivendo-a ao longo de 93 anos, soube quebrar tabus e emergir como bandeira de uma nação a partir de uma das classes mais desprotegidas em Portugal. Nada lhe roubou o sorriso sereno. Partiu em paz com a vida, sem necessidade de se zangar com ela.
*Chefe de redação