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As ondas estendem-se como finos lençóis na areia molhada. Mais atrás, como degraus de espuma. O sol cintila no seu reflexo, estilhaçado em mil partículas de luz, ondulantes, incandescentes. Com os pés enterrados na areia negra, de olhos no horizonte, embalada pelo som do mar, pergunto-me se toda aquela beleza cura.
Na praia do Areal de Santa Bárbara, em São Miguel, reconcilio-me com o encanto. Tenho andado zangada, de mal com o estado das coisas e aceito isso. Sinto que, num mundo tóxico, estar confortável é mau sinal. Estou certa de que há uma dose de angústia que assiste a todos os seres sensíveis, aos seres empáticos e que se não fosse esse desconforto, não haveria escrita. Estar em carne viva é necessário para todos os que estão dedicados à criação.
Tenho pensado muito sobre esse equilíbrio, o do encantamento em plena consciência das coisas. Sobram, de facto, poucas coisas que nos puxem para o deslumbramento nos tempos que vivemos. E atenção que não falo de escapismo, de alienação, de entorpecimento. Falo da maravilha, do puro encantamento, dos atalhos que nos devolvem à poesia, ao êxtase, que nos atiram para a certeza do metafísico. Como é que alguém que faz música pode perder a fé no invisível transformador?
Enfim, estou certa que um desses portais para o arrebatamento, que nos reconciliam com a beleza do Mundo, apesar de todo o caos e toda a brutalidade, é a natureza. Estar sob a copa de uma árvore centenária, ou diante da ancestralidade de uma fraga inclinada sobre o mar, supera qualquer abóboda de catedral gótica, qualquer fresco de Leonardo, qualquer imponência de mármore esculpida. Ter o horizonte em diante, em verde vivo respirante ou na linha em que a água se confunde com o céu, ter um céu estrelado em redor, no esplendor de um planetário em movimento, estar embrenhada numa floresta antiga, entre feixes de luz e sombra, envolta pelo som amadeirado e crepitante, aflora a espiritualidade que se esconde atrás de toda a minha racionalidade pragmática. Cada um tem o seu templo, mas por muito piroso e pueril que isto possa soar, a natureza é o único que nos é comum.
São Miguel é um bálsamo. O mar profundo, a clorofila, as pedras negras, o céu cambiante, o sopro ameno. Um verdadeiro afago nas pisaduras da desesperança. Enchi os pulmões de azul e verde, abri o peito à lonjura do horizonte e renovei os votos com a convicção de que, apesar dos trambolhões, mesmo que tudo descambe em conflito e desistência, o tempo das pedras é outro. Se houver humildade para nos sintonizarmos com a sua respiração e para baixar a cabeça quando entramos no templo, teremos sempre um atalho para a maravilha.