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Victoria Camps enganou-se na referência cronológica, quando escreveu o livro "O século das mulheres". Não é este o tempo delas, ao contrário do que vaticinou. E que bom seria se esse tempo nunca chegasse por dispensabilidade de dicotomias entre homens e mulheres, erguidas para reclamar direitos que não são mais do que práticas de bom senso. Que estranhamente não existem, muitas vezes nos mais insuspeitos contextos.
Uma recente investigação do Centro de Estudos para a Intervenção Social demonstrou aquilo que todas sentimos na vida de todos os dias: as mulheres portuguesas fazem mais trabalho doméstico do que os homens. Em média, trabalham mais 1.30 h do que os homens a esse nível, ou seja, mais cerca de 550 horas por ano. É muito. E haverá lares em que esse número duplica, triplica... porque simplesmente eles não participam nas lides familiares. Nem conversam sobre o assunto. Porque a discursividade desse tópico implicaria reconhecer aí um problema que muitos querem converter num não-assunto.
Na sequência deste estudo, criou-se uma campanha de sensibilização da partilha de responsabilidades do trabalho não pago, disseminada, por estes dias, em mupis onde se lançam várias perguntas: "Há quanto tempo é que não faço eu o jantar?", "Há quanto tempo é que não te vou buscar à escola?", "Quando é que tenho tempo para mim?". Não serão estas mensagens que funcionam como uma espécie de balas mágicas, capazes de alterar, de um dia para outro, comportamentos. Mas ajudam a recolocar o tema no espaço público mediático onde o debate é, muitas vezes, monotemático e declinado, acima de tudo, no masculino. Donde resultam modos de pensar pouco diversificados que podem fazer desvios de uma realidade que importaria reter.
Vários estudos feitos em Portugal concluem que os media informativos, nomeadamente nos seus espaços de opinião, se fazem, sobretudo, com homens. Isso nota-se mais no horário nobre dos canais de TV. Comparando diferentes emissões, constata-se que quanto mais um formato é considerado de prestígio (tem altas audiências, está em horário nobre...), menos possibilidade há de aí se encontrar uma presença feminina. Percorrendo os plateaux informativos, elas escondem-se numa persistente invisibilidade, parecendo haver um teto de vidro que insiste em passar do tecido social para dentro dos estúdios televisivos. Na verdade, os jornalistas também não contribuem para ajudar a quebrar esse "glass ceiling" que impede as mulheres de progredirem socialmente. Elas já são em número significativo ou maioritário em diversos campos, mas continuam aquém de terem uma posição dominante em cargos de poder ou em lugares de grande visibilidade. Os media, principalmente a TV informativa, lá se encarregam de exacerbar essa situação.
Este não é um retrato muito diferente de outros países europeus. Nos debates dos assuntos ditos mais sérios, as mulheres continuam a ser simbolicamente aniquiladas e isso tem um enorme significado social. Claro que há exceções que frequentemente são tratadas através de representações discursivas que as colocam próximo do universo masculino: "dama de ferro", "uma mulher que governa com pulso de homem"... Os estudiosos de género chamam-lhes "mulheres álibi", ou seja, mulheres que legitimam o desequilíbrio de género. E se estão ali, tiveram já de fazer uma dura e persistente prova de vida.
Não sendo eu partidária de linhas de investigação e intervenção feministas, não posso deixar de reconhecer a pertinência de abanar com músculo estas bandeiras da dificuldade em conciliar o trabalho com a família e em partilhar as tarefas domésticas de forma mais equilibrada e mais justa. Uma mulher não pode, não deve, sentir em permanência a família como um peso que carrega com muita dificuldade. Muitas vezes, para prosseguir a jornada, há mesmo que atirar estrada fora pedaços que também estruturam a sua vida, como é o caso da sua profissão ou mesmo da sua vida pessoal. E isso não é um problema individual. É uma questão política que deve ser bem discutida por todos.
PROF. ASSOCIADA COM AGREGAÇÃO DA UMINHO