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O Governo vive tempos reconhecidamente complexos. O seu excecional estado de graça, que durou quase dois anos, ardeu em Pedrógão, agravou-se em Tancos, implodiu de forma fragorosa nos fogos de outubro e foi também infetado pela crise da legionela. Neste "trend" negativo, a excelente vitória autárquica do PS quase não teve efeito de contraponto, porque logo mergulhou os comunistas num desespero que os levou a soltar pelas ruas os sindicatos, tornando ainda mais difícil o desenho do Orçamento para 2018, que Bruxelas já olha com perplexo sobrolho.
Pelo caminho, o PS perdeu um aliado vital: Passos Coelho, "bête noire" da esquerda da Esquerda, cujas aparições pavlovianamente traziam a troika de volta à memória coletiva, o que muito atenuava as tentações de pôr termo à aliança contranatura com os "mencheviques" do Rato. Nem Rui Rio nem Santana Lopes, a menos que cometam o erro de dar palco em nome do PSD a figuras que convoquem à ideia os idos de 2011/15, constituem, por ora, uma alternativa ao antigo primeiro-ministro, em termos diabolização eficaz.
Depois, há Marcelo. Do descrispador papel de anti-Cavaco, por que Portugal ansiava, o presidente começou por fazer o que lhe competia no apoio a um Governo que ele percebia ter ganho a sintonia com o país e que, com alguma sorte externa e muita habilidade interna, ia completando a quadratura do círculo - isto é, seduzir Shaüble e sorrir no dia a dia para os amigos lusos de Varoufakis. Marcelo cavalgou a onda de popularidade de António Costa mas teve a habilidade de ir criando um espaço próprio, através de uma coreografia de afetos que o deixou na crista da onda, quando o rebentamento caiu sobre o Executivo. E, sem uma Oposição para recolher os louros dos desaires do Governo, o presidente acaba por ser - "by default" mas também, há que dizê-lo, de forma inteligente - o grande usufrutuário da situação. Hoje, para o bem e, em especial, para o mal, o presidente é o "provedor" dos portugueses, agora que uma parte significativa do país é atravessada por alguma insegurança.
António Costa pode recuperar deste momento difícil que vive? Para as Cassandras do "quanto pior melhor", vive-se um fim de festa. Estou muito longe de pensar assim. É claro que já nada será como dantes, os desgastes não se recuperam e o cansaço com as caras faz estragos progressivos na credibilidade do projeto. A "geringonça" pode não chegar ao fim, acho mesmo que são ínfimas as hipóteses de que isso venha a acontecer. Qual seria a vantagem para o PC de manter, até à véspera das próximas eleições legislativas, o apoio a um Governo que vai ser o seu "bombo de festa" na campanha? Só que isso até é capaz de não ser mau para António Costa. E o PC sabe que Costa sabe que os comunistas sabem isso.
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