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Um travessão – esse velho cavaleiro da escrita que anuncia diálogos, marca pausas dramáticas ou interjeições elegantes – foi confundido por um editor digital com “um risco que apareceu sozinho”. Essa ignorância digital não é inocente. Ela vem a organizar-se como força cultural, moldando uma nova forma de pensamento onde o sentido é fragmentado, e o saber, reduzido ao clique que confirma uma crença anterior. O algoritmo alimenta a ignorância com o que ela mais deseja: conforto e confirmação.
Mas há algo mais grave. O desaparecimento do travessão não é apenas uma questão gramatical. É um sintoma de um processo maior: a erosão da cultura escrita como espaço de complexidade, ambiguidade e reflexão. O pensamento linear, analógico e argumentativo está a ser soterrado por fluxos descontínuos de opiniões rasas. A nova epistemologia é emocional, fragmentária e viral. A crença substitui o raciocínio. O post viral substitui o parágrafo bem escrito.
Não é a inteligência artificial que nos ameaça – é a burrice humana, alimentada pela preguiça cognitiva e acelerada pela lógica das redes. A culpa não é do ChatGPT nem do Google Tradutor, mas da rendição ao utilitarismo da ignorância. O problema não está na ferramenta, mas no abandono deliberado da curiosidade, da gramática, do sentido. A nova censura não é feita por governos, mas por interfaces que “simplificam” demais – a ponto de amputar a própria linguagem.
O combate à ignorância digital é cultural. Ele começa na escola, mas também no jornalismo, napolítica, na curadoria do conteúdo. Começa no modo como usamos – ou deixamos de usar – um travessão. A linguagem é o último reduto da civilização. E se o travessão desaparecer, talvez seja apenas o prenúncio de que outras linhas – as que ligam causa e efeito, argumento e consequência – também foram rompidas.