Excomungado por um Papa, Fidel sobreviveu a cinco e Francisco diz que reza por ele. Há homens sem medida que se fazem mito e, mesmo desmentidos, são capazes de eternizar um segredo, escolher o dia e a forma de se finarem. Assim foi Fidel, chorado pelos seus. Morreu na cama, como um vencedor, e no exato dia do 60.º aniversário do seu embarque libertador com destino a Cuba, eram as primeiras horas de 25 de novembro de 1956. Eu só tinha 13 dias, não dei por isso. Fidel nunca mo disse, e eu não tive o privilégio do nosso Marcelo, um dos últimos com quem conversou, mas garanto-vos que a "Granma", a cantada traineira que levava 82 revolucionários a bordo, nunca chegou ao seu destino. Esse segredo foi a manha do galego. Escondia-o detrás das barbas que nenhum inimigo lhe conseguiu rapar. Ele, de quem se diz que resistiu a 638 atentados e sobreviveu a 10 presidentes norte-americanos.
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Sim, a história conta que, depois de Vera Cruz, no México, e terminada a travessia, triunfaram um líder e a revolução que Fidel e Guevara quiseram exportar para os quatro cantos da selva sul-americana e para vários países de África. Angola, por exemplo, conheceu bem a presença de 300 mil tropas cubanos que inclinaram o curso da guerra civil que se seguiu à nossa. Isolados durante décadas, cercados pelo império americano, mas sempre amparados pelo outro, o soviético, Cuba e as ideias de Fidel alimentaram guerrilhas, abalaram governos, atravessaram muros e regimes; e chegaram a incendiar a cabeça sonhadora de muitos milhares de jovens, por todo o mundo ocidental.
Os mitos são sonhos públicos. O sonho dos que iam a bordo da "Granma", esse, sabemo-lo hoje, jamais se cumpriu. Ao longo de décadas, a maior e mais luminosa ilha das Caraíbas onde desembarcaram foi-se afundando, longe de si própria, com um povo generoso mas sofrido, privado da democracia e dos avanços do Mundo, e que viu a sua terra transformar-se no mais conservado parque arqueológico do socialismo no último século.
Ao longo de décadas, Fidel sobreviveu ao seu próprio naufrágio. Resistiu ao cerco da nação mais poderosa do Mundo e aguentou a falta da bengala aliada, aquele colapso do monstro que alimentou o império soviético. Até na doença, que o obrigou desde 2006 a retirar-se da política diária, se manteve firme e a irradiar autoridade. Até ontem. O funeral é só no próximo domingo. Até lá, não se sabe ainda o que se há de fazer com as suas cinzas. Talvez alguém decida largá-las no mar, naquele lugar onde, há 60 anos, se perdeu um barco de sonhos que procurava um Mundo outro, e melhor.
* Diretor