O último sorteio da "fatura da sorte"
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"A lotaria na Babilónia" é o título de um dos mais fascinantes contos de Jorge Luís Borges: "Como todos os homens da Babilónia, fui procônsul; como todos, escravo. Conheci também a omnipotência, a infâmia, o cárcere (...) Devo esta diversidade quase atroz a uma instituição que outras repúblicas desconhecem ou que trabalha nelas de um modo imperfeito e secreto: a lotaria..."
Vem este depoimento tão perturbador a propósito das intermináveis peripécias que iluminam a carreira pública de Passos Coelho. Começou por alegar, "distração" e "ignorância". Depois, queixou-se de "perseguição política", pressurosamente corroborada pelo Presidente da República. Confessou, a seguir, uma eventual falta de liquidez. Para quem tanto se empenhou em substituir o sentido republicano do dever cívico pelo medo da vontade anónima e imperscrutável dos mercados financeiros, já só falta alegar um derradeiro argumento, definitivo e irrespondível: tivessem inventado mais cedo a "fatura da sorte" e nenhuma infração fiscal ou contributiva teria sido cometida!
Verificamos agora que quando este primeiro-ministro dizia que vivíamos "acima das nossas possibilidades", quando denunciava o "despesismo irresponsável" e prometia cortar as "gorduras do Estado" - caminho único para a redenção de um passado perdulário - afinal, falava de si próprio! Confessava ainda os seus próprios atos e omissões, quando apregoava o cumprimento rigoroso - "custe o que custar"! - das nossas obrigações para com os credores. Ele é, de facto, a genuína encarnação de todos os vícios que ele mesmo invocava para justificar os tremendos sacrifícios que a todos exigiu sem contemplação pelos mais pobres e vulneráveis. Entende-se a dificuldade atual em explicar as suas repetidas falhas no cumprimento dos seus próprios deveres fiscais e contributivos. E, também, que se tenha escusado a esclarecer a sua participação nos empreendimentos lucrativos da Tecnoforma e o seu voluntariado "gracioso" numa obscura ONG, procurando iludir as transgressões por si cometidas e confessadas, sob a alegação ingénua de que é alvo de perseguição política.
Um primeiro-ministro ciente das suas responsabilidades políticas já teria pedido a demissão. Um presidente cioso das suas atribuições constitucionais, em vez de o defender, há muito que o teria demitido. Ninguém zela, afinal, pelo "regular funcionamento das instituições democráticas". Se o presidente se limita a cronometrar a conclusão dos mandatos legislativos, para quê elegê-lo por sufrágio universal e direto? Para demitir governos minoritários, não chegaria o Parlamento? Os dois últimos mandatos presidenciais demonstram cabalmente que o nosso sistema semipresidencial está exausto. Apenas alimenta a degradação "babilónica" da nossa democracia e um paternalismo ancestral incapaz de conviver tranquilamente com o pluralismo político. É lamentável constatar tanto entusiasmo fútil - que a Comunicação Social amplifica até à náusea - pelo desfile de vaidades em que se tornou a "indigitação" de putativos candidatos às futuras eleições presidenciais.