A declaração feita ontem pelo primeiro-ministro no final da reunião da concertação social tem o seu quê de surreal. Ainda mal refeito de uma estrondosa derrota política, Pedro Passos Coelho foi incapaz de assumir que o proposto aumento da famigerada Taxa Social única (TSU) foi um erro básico.
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Disse o chefe de Governo: a TSU "foi mal entendida" e subvertida nos seus propósitos "por alguns empresários", esses malandros. Quer dizer: Passos não admite que o erro tenha sido seu e/ou de quem o aconselhou. Esta não é apenas uma demonstração de arrogância intelectual e inépcia política: é, antes disso, uma declaração típica de quem perdeu o vínculo à realidade. É uma declaração perigosa - não para Passos Coelho, que pode continuar a achar-se uma sumidade, mas perigosa para país,que tem um primeiro-ministro cego e surdo.
Encobrir o erro, lá diz o ditado, é errar outra vez. Agastado e desgastado como está, o primeiro-ministro não dá sinais de poder conseguir colar os cacos e seguir em frente. A anunciada remodelação governamental dar-lhe-á algum oxigénio. Duvido que chegue. A TSU obrigou Passos a um gigante recuo, roubando-lhe espaço de manobra para tomar medidas duras - e elas vão ser necessárias para pôr o défice nos eixos.
Por outro lado, a ação de cosmética ensaiada com o parceiro de coligação não disso mesmo: sob pena de regressar aos tempos em que os seus deputados cabiam num táxi, o PP não pôde dar-se ao luxo de acompanhar por muito mais tempo os exercícios intelectuais de Vítor Gaspar e companhia. O eleitorado de Direita esboroa-se a cada dia que passa. E Portas, uns anos-luz à frente de Passos na leitura dos acontecimentos políticos e respetivas consequências, sabe disso muito bem.
A declaração de Passos Coelho fez-me lembrar uma das mais fantásticas fábulas ("Os três filósofos") de Ambrose Bierce, o norte-americano que tinha no cinismo e no humor negro a sua marca distintiva.
"Viram-se, um dia, um urso, uma raposa e um gambá apanhados por um tsunami.
- "A morte só ama os covardes", afirmou o urso, atirando-se tolamente para a frente, a enfrentar as águas.
- "Que imbecil"!, exclamou a raposa. "Sei de um meio muito mais eficaz". E enfiou-se numa árvore oca.
- "Há forças maléficas - declarou o gambá - a que o sábio não tenta fazer frente, nem evitar. É necessário, antes de tudo o mais, conhecer a natureza do antagonista". Dizendo isto, estendeu-se no chão, a fingir de morto.
Passos é o urso, Portas a raposa e Cavaco Silva o gambá (com o devido respeito pelos três). O tsunami é a imagem daquilo em a vida dos portugueses se transformou. A partir de Janeiro, há mais impostos. Aumenta o tsunami. Baixa a esperança.