Mais do que pelas ações desenvolvidas e coroadas de êxito no mandato, o anterior procurador-geral da República ficou célebre por afirmações desassombradas - e polémicas. Mesmo fundamentada, a hipérbole de se comparar à rainha de Inglaterra deu brado; já as suas desconfianças sobre escutas feitas sem rei nem roque - muito para lá das decorrentes da compra de aparelhómetros sofisticados na Praça da Figueira - geraram ondas telúricas que perduram.
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A realização de escutas à margem de um enquadramento jurídico rígido dá para tudo. Seguindo um outro raciocínio de Pinto Monteiro, até para a mistura explosiva e de bisturi cirurgicamente atuante entre Justiça e Política. A "plantação" na praça pública de escutas sobre eminentes figuras do regime, mesmo em contramão ao segredo de justiça, é suscetível de alimentar quer o chamado interesse público quer o puro e duro "voyeurismo".
Hoje ninguém está livre de ser apanhado numa escuta, mesmo não sendo o alvo, tal o estado de paranoia coletiva do país. O que não quer dizer, embora estando por provar, que não seja possível engendrar um alvo para coscuvilhice e entalanço de um protagonista proeminente.
Se há algo verdadeiramente excitante nos tempos recentes é escutar um primeiro-ministro. Até agora não reveladas, as conversas de José Sócrates com arguidos do processo "Face Oculta" deram para alimentar horas e horas de excitação, queimando-o em lume brando. Agora, hélas!, chegou a vez de Passos Coelho, contendo uma variante: ao invés do seu antecessor, já lançou o repto para que sejam divulgadas as conversas que terá tido por iniciativa de contacto de um banqueiro, José Maria Ricciardi, presidente do BESI!
Ou seja: além de estratégias opostas entre o anterior e o atual primeiro-ministro, o tempo e o modo como ambos os processos chegaram ao conhecimento público são suscetíveis de interpretações díspares. Para mais numa confeção condimentada pela sua verborreia e altivez, as escutas a Sócrates serviram para o cozinhar em lume brando, enquanto a agora conhecida com Passos Coelho lhe dá jeito para remarcar posição pública de impoluto perante senhores todo-poderosos.
Um raciocínio destes poderá ser considerado retorcido; mas é legítimo.
A divulgação do envio pelo anterior procurador-geral da República da escuta para quem tem a capacidade de sobre ela decidir, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, permite perceber se efetivamente chegou um novo tempo através da tomada de posse recentíssima de Joana Marques Vidal. Com outra personagem no topo da hierarquia, a Procuradoria-Geral da República fez ontem saber estar em curso um inquérito para perceber quem violou o segredo de justiça no caso Passos Coelho. Ora pois. No festival de violações do segredo de justiça nunca até hoje um só elemento do Ministério Público ou das polícias foi incriminado. Algo vai mudar? Será que a PGR vai, por fim, combater a imagem segundo a qual é também um rede furada por onde se coam informações?
São de seguir os próximos capítulos.