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Dá-se o caso - uma desgraça nunca vem só - de os tribunais criminais de Lisboa serem mesmo ao lado da Web Summit e vice-versa. Talvez 200 metros, ainda ontem medi a distância em passos no Parque das Nações, do Altice Arena e FIL ao Campus de Justiça. Oh, como se aprende neste caminho e destino. Caía uma chuva molha-parvos e molha-unicórnios mas, fora o meu preconceito contra espetar à força um corno na testa de um cavalinho, nada tenho contra novas tecnologias e os seus génios bilionários, por isso vos escrevo, vos gravo e a minhas palavras e voz são transmitidas em coisas que eles inventaram. Sou grato a quem me ajuda neste trabalho de ouvir e de ver o mundo. Por isso, também agradeço ao jovem brasileiro que, na fila gigante da entrada da Web Summit, desenfiado numa boina que era quase hipster urbana, quase rural, quase chapéu de Halloween, quase toldo da praia da Figueira, se alavancou para cima duma mocinha com cartão Web Summit ao pescoço:
- Qual é o seu parceiro tecnológico?...
Porque eu acabara de sair dali, a 200 metros, dos tribunais e de mais um caso em que assisti ao Portugal antigo, analógico, sanguíneo, pífio, traiçoeiro e papeleiro. Tudo isso, mas verdadeiro.
O senhor Fernando tinha uma velhíssima barbicha branca de bode. Estava, no tribunal, a relatar o final da sua vida, porque não há solução para o golpe de machado que levou na confiança que tinha nas pessoas.
- O senhor foi ressarcido?, perguntou-lhe a juíza.
- Quanto, sotôra?... Ainda estou à espera. Tenho 85 anos. Ele vive numa bruta moradia e eu num quarto alugado. Por três vezes eu estive para ser posto na rua, por não conseguir pagar a renda. Por causa dele, não por causa de mim!
O senhor Fernando tinha uma pequena empresa de construção civil. A contabilidade era desde sempre feita por um guarda-livros, que morreu em 2012. Foi o sobrinho do guarda-livros quem ficou a tratar do escritório. Foi este sobrinho quem enganou o senhor Fernando. O sobrinho, o arguido, não apareceu no tribunal e nem avisou o advogado de defesa, que ficou ofendido no seu canto, coçando a cabeça. "Não me disse nada. Pode ter-lhe acontecido alguma coisa". A juíza perguntou ao senhor Fernando, a vítima:
- O senhor é amigo ou tem alguma coisa contra o arguido?
- Amigo?, penso que não! O tio dele era o guarda-livros da firma. Era uma pessoa muito responsável, muito séria.
- O que eu queria saber é se a relação que tem com ele o vai impedir de falar com verdade.
- É a primeira vez que venho a tribunal, aos 85 anos, não é agora que vou começar a mentir. Nunca pensei que ele me fosse enganar.
E depois, delicadíssimo, o senhor Fernando foi obrigado a relembrar o buraco financeiro em que o enfiaram. Entre 2012 a 2017, o senhor Fernando entregou todos os meses ao novo guarda-livros um envelope com dinheiro para as questões fiscais. Este devolvia um papelinho. Um dia, tocaram à porta do senhor Fernando: era um oficial das finanças que lhe disse que estava a dever muito dinheiro ao fisco. Com multas, cerca de 30 mil euros.
- E onde é que ele usava o dinheiro que o senhor lhe dava?
- Era para ele andar a passear. Telefonei à empregada e ela disse "está de férias". Na semana seguinte, telefonei de novo e a emprega... "está de férias". Ah, pois pode estar de férias, com o meu dinheiro!
O oficial das finanças, felizmente, foi uma pessoa amiga do senhor Fernando: "Você está num grande problema. Você foi vigarizado".
- Fui ter com ele. Estava fechado no escritório, mas eu pus o pé na porta. "Dá-me a documentação toda, a mim já não vigarizas nada!"
Mas com papéis ou plataformas digitais, guarda-livros ou unicórnios, sonhos pequenos ou quimeras milionária, o que sabemos é isto: há pessoas sérias no mundo e há muitos vigaristas.
*Jornalista
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)