Podemos sempre recorrer à anedota do homem que se atira do alto de um prédio e vai repetindo ao longo da queda "até aqui tudo bem". Essa pareceu ser a primeira reação de Mariano Rajoy perante o resultado das eleições locais em Espanha, afirmando, num primeiro momento, que nada ia alterar na condução do Governo ou do Partido Popular. Entretanto, já veio retificar, anunciando a possibilidade de mudanças na cúpula do seu partido, o que deve ser estranhíssimo para alguma direita portuguesa que correu com celeridade a celebrar a vitória do PP ou, dito de outra forma, "de mais um Governo de austeridade".
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De facto, o PP foi o partido mais votado, mas perdeu mais de dois milhões de votos e 600 maiorias absolutas em toda a Espanha. O PSOE também perdeu votos mas está apenas a 2% dos populares. Esta é uma grelha de leitura possível, uma visão clássica, baseada no embate entre os dois partidos que alternam no poder. Mas aquilo que nos traz o vento de Espanha é algo completamente diferente e abala este mundo habitual.
O que resultou das eleições de 24 de maio é que os dois partidos de poder não somam mais de 52% de votos e todo o sistema "partidocrata" é desafiado pela emergência de independentes como Manuela Carmena ou Ada Colau, capazes de tomarem o poder em cidades tão emblemáticas como Madrid ou Barcelona. O que aconteceu, um pouco por toda a Espanha, é que gente que estava de fora do sistema subitamente chegou ao seu âmago, tomou o poder e imaginem... no dia seguinte não foi o dilúvio. Milhões de espanhóis interrogaram-se "por que não" e arriscaram o voto.
Será que os eleitores portugueses, cansados dos partidos tradicionais, poderiam fazer escolhas semelhantes? Dificilmente. Por um lado, o sistema autoprotege-se, ao não permitir partidos regionais nem candidaturas independentes e, por outro lado, falta densidade à nossa sociedade civil para gerar protagonistas como aqueles que ganharam as eleições.
Dificilmente Rui Moreira, apoiado pelo antigo presidente da Câmara e por partidos tradicionais, Rui Tavares, que sai de uma cisão no Bloco de Esquerda, ou Marinho e Pinto, moldado nos programas populistas de televisão, podem representar os mesmos valores de mudança que representam uma juíza jubilada do Supremo Tribunal que decidiu abrir uma loja para vender roupa feita por reclusas (Carmena) ou uma trabalhadora precária, antiga "okupa", que luta contra os despejos (Colau).
Sim, Espanha está porventura mais instável e politicamente mais perigosa. Mas decididamente muito mais interessante.