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No passado domingo, escrevi um artigo de opinião no JN em que abordava a problemática do poder local em três vertentes. Uma relevava um comprovado exercício de transparência na gestão das autarquias, outra ressaltava a dimensão despicienda da dívida global do poder local e uma terceira desmontava a insensatez de avaliar o passivo de cada Câmara em valor absoluto e não por capitação.
Ontem, o secretário de Estado José Junqueiro responde a essa crónica de forma bem-educada, o que enalteço, mas desfocando de novo, habilmente, a realidade. Dando-me razão, reafirma o bom comportamento dos municípios em termos de seriedade de gestão, mas passa ao lado da análise da relatividade ridícula da dívida municipal, preferindo assestar baterias contra Gaia, comparando-a, desfavoravelmente, com outras duas autarquias.
Fico satisfeito pela convergência no juízo favorável à probidade da maioria dos autarcas, mas tenho que reincidir na abordagem dos outros dois temas. Sobre o segundo, a dimensão relativamente irrelevante da dívida global das autarquias, compreendo o silêncio do senhor secretário de Estado.
Com o país à beira da derrocada financeira, com o FMI à espera na fronteira, não é cómodo falar do tema a um membro de um Governo que ocupa o poder há meia dúzia de anos e que até há pouco só apregoava facilitismo. Mas vale a pena reiterar a verdade.
A dívida consolidada de todos os municípios portugueses representa somente 2% da dívida gigantesca do Estado português. A tal que nos está a asfixiar com impostos, cortes de direitos e ameaça de perda de soberania. Com uma diferença: a migalha gerada pelas autarquias foi-o em investimento, a montanha gerada pelo Estado foi-o em consumo.
Finalmente, o ataque feito à situação económica e financeira da Câmara de Gaia através de uma comparação malévola com outras autarquias, que aliás não belisquei minimamente no meu artigo. Limitei-me no mesmo à factualidade de elencar quais eram as três Câmaras com maior dívida bancária, mas que tal não tinha qualquer valor, dado que uma avaliação global devia ser feita em dívida por habitante.
O senhor secretário de Estado também sabe que não devia comparar realidades que partiram de índices completamente diferentes de qualidade de vida há uma década, bem como comparar opções políticas de gestão diversas, todas respeitáveis, mas que apostam em diferentes modelos de desenvolvimento.
Registei, igualmente, a forma conveniente como evitou comparar os prazos de pagamento entre Gaia e outra grande autarquia da sua simpatia! Autarquia essa cujo passivo recentemente público, não contraditado, é de cerca de 2 mil milhões de euros, 2/5 do passivo total do poder local. Passivo esse que não é certamente fruto da acção do seu presidente, cuja capacidade e idoneidade não questiono, mas sim do desequilíbrio estrutural do financiamento das grandes Câmaras. Desequilíbrio que denunciei e o dr. José Junqueiro não contestou.
Gaia investiu em equipamentos públicos 980 milhões de euros desde 1998, 160 milhões em saneamento básico, 170 milhões em habitação social para 4000 famílias. Gaia reabilitou a sua frente de mar e lançou um enérgico processo de reabilitação do seu Centro Histórico. Tudo isto foi financiado com 75% de capitais próprios.
Mas é por isso que o El Corte Inglés, a Alert, as cadeias de hotéis Yeatman e CS, aqui se estão a instalar. Por isso é que temos, contra a corrente, investimento imobiliário e industrial significativo (mil milhões de euros em contratos de desenvolvimento, número mítico sufragado presencialmente pelo ex-ministro da Economia Manuel Pinho). Por isso, é que o desemprego, altíssimo, causado pela recessão nacional, é aqui combatido energicamente.
Como secretário de Estado do sector ficava-lhe até bem enaltecer um município que tem o melhor índice de funcionários "per capita" no país (somente 2000 para mais de 300 mil habitantes), que é auto-suficiente orçamentalmente na água, saneamento e águas pluviais, recolha e tratamento de RSU, protecção civil e gestão de espaços verdes. Que tem a sensibilidade social de, em tempo de crise, oferecer os livros escolares a todos os estudantes do 1.º Ciclo do Ensino Básico, a quem complementa as refeições quotidianas. Município que, de acordo com os números da Secretaria de Estado (DGAL) é, "per capita", o 124.º em endividamento de médio longo prazo e o 184.º em endividamento líquido, entre as 308 autarquias.
O senhor Secretário de Estado fala das nossas dificuldades de tesouraria. Com certeza que as temos, ao nível do que está a acontecer com mais de 90% das Câmaras. Só que elas seriam totalmente irrelevantes se o Estado e as empresas públicas já nos tivessem pago, cumprindo os contratos, os 41,9 milhões de euros que nos devem. Ou que as Câmaras pudessem financiar-se mensalmente como faz o Governo.
Como se vê, nesta matéria, a das finanças públicas, Sua Excelência o secretário de Estado não é pessoalmente o elo mais fraco. Todavia, manifestamente, aos olhos de milhões de portugueses e observadores internacionais, é-o o seu Governo e a actual maioria.