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O Parlamento aprovou a criação de uma nova comissão sobre Camarate. A decisão justifica-se na medida em que haja factos novos que devam ser trazidos ao Parlamento. Como se justifica a participação dos representantes das famílias, não se entendendo as dúvidas suscitadas por Jaime Gama a este propósito. Se não fossem eles, Camarate estaria convenientemente arrumado nas prateleiras da história como um acidente trágico. Com toda a probabilidade, a nona comissão virá a confirmar a tese do atentado, reconhecida desde a quarta comissão e, como lembrou Ribeiro e Castro, a afastar definitivamente a ideia de que estamos perante um atentado ou um acidente consoante a maioria é de Direita ou de Esquerda. Honra seja feita pois ao Parlamento, que resistiu à partidarização da questão.
Tudo isto sucede um mês depois do 30.º aniversário de Camarate, em que os escaparates se encheram de publicações sobre Sá Carneiro. Surgiram novas biografias, novas análises políticas e, também, um novo depoimento de Diogo Freitas do Amaral. Em "Camarate - um caso ainda em aberto", o antigo líder do CDS e companheiro de Sá Carneiro na AD, revela as conversas e a correspondência trocadas com o procurador-geral de então, Cunha Rodrigues, num claro apelo à reabertura do processo e à continuação da investigação do que está ainda por investigar, concluindo que, se esse seu apelo for ouvido, como parece ser o caso, "ficaremos todos com a consciência tranquila de quem fez tudo o que estava ao alcance para se apurar a verdade e se fazer justiça".
Ora, este apelo sincero, que sustenta na sua consciência de cidadão, na sua inquestionável amizade para com as vítimas e nos seus imperativos éticos, suscita, mais uma vez, a questão que constitui o verdadeiro mistério de Camarate e que acaba por ser, no fundo, o mistério de uma investigação por fazer. Como escreve Freitas, "o Estado Português, sobretudo através da Polícia Judiciária e do Ministério Público, não só não fez tudo o que era necessário para apurar a verdade, como tudo fez para impedir que o caso fosse discutido em tribunal". O que, aliás, já escrevera, em 2001, no prefácio do livro "O crime de Camarate", de Ricardo Sá Fernandes, ao falar da "polícia portuguesa que se recusou a colaborar com a Scotland Yard, que afirmava ter pistas sobre um possível atentado mas o Governo não se importou", e de "um procurador-geral da República que, sem argumentos convincentes, sempre se recusou a deixar seguir o caso para tribunal sem que qualquer ministro da Justiça lhe desse orientação, ou qualquer presidente da República ou primeiro-ministro propusesse, como se impunha, a sua substituição".
No entanto, esta sua constatação é uma evidência há 30 anos e à época os políticos tudo fizeram para que a tese do acidente vingasse, e para que a do atentado fosse desvalorizada. Já na noite de 4 de Dezembro de 1980, a Comissão Política do PSD emitiu um comunicado em que dava conta de um "acidente trágico" e negava qualquer "acção criminosa". E se Diogo Freitas do Amaral, que foi primeiro-ministro interino nos dias que se seguiram à tragédia e se manteve depois no Governo, tivesse falado então, numa altura em que tinha responsabilidades partidárias e governativas, se tivesse suscitado as dúvidas que então já se justificavam, e que os anos vieram a confirmar, se tivesse denunciado as manobras de encobrimento em que participaram alguns dos seus colegas de governo, talvez tudo tivesse sido diferente, e talvez se tornasse desnecessário agora, 30 anos volvidos, apelar à constituição de uma nova comissão de inquérito.