O vício

Os talibãs proibiram a música. Destruíram milhares de instrumentos musicais e inspecionaram restaurantes, hotéis e salões de casamentos para verificar que cumprem o silêncio obrigatório. Ser músico profissional pode dar direito a punição ou cárcere. Tudo para evitar o vício.

Os talibãs decapitaram os manequins das lojas. Nem as mulheres de plástico podem ter rosto. O rosto das mulheres no espaço público é como a música, tem de ser proibido, e isso aplica-se até aos objetos.

Os talibãs proibiram as fotografias de animais e de entes queridos. Não pode haver representações das criaturas de Deus, todas as fotos de seres vivos estão proibidas, como a música e o rosto das mulheres.

Os talibãs destruíram milhares de filmes, perseguiram os seus distribuidores e proibiram a exibição de filmes “vulgares” para evitar a propagação do vício. Não pode haver música, não pode haver fotografia, não pode haver cinema. Porque, como o rosto das mulheres, a cultura é o atalho para a perdição.

Os talibãs proibiram a voz das mulheres no espaço público. Já não podiam ter corpo, totalmente tapadas pela burca, como sombras, sempre uns passos atrás dos homens pela rua. Sem rosto, sem olhar, sem cabelo, sem mãos, sem um centímetro de pele exposta e, agora, estão também sem voz. Já não podiam conduzir, agora não podem apanhar táxis. Não podiam ter dinheiro próprio, conta bancária, agora não podem nem comprar no mercado, porque não podem emitir som, não podem pedir pelo pão, pelo peixe, pela fruta.

A voz das mulheres é como a música, potencialmente perigosa, porque atrai os homens virtuosos para o vício e, como tal, os talibãs proibiram as mulheres de cantar e ler em voz alta mesmo dentro de casa. Não podem falar na rua, cantar em casa ou ler em voz alta. Não podem cantar para os filhos enquanto os embalam, não podem ler uma história ao deitar, o seu silenciamento é total.

Os talibãs proibiram a escola para as meninas. As mulheres já não podiam ir para a faculdade, agora as meninas não podem ir além da escola primária. O corpo, o cabelo, o rosto, a voz, o canto, a leitura, a música, o cinema e a fotografia são proibidos, porque é que a escola haveria de ser autorizada?

Imaginemos uma sociedade de mulheres invisíveis, silenciadas, sem acesso à educação, a quase todas as profissões, proibidas até de cantar em casa. Imaginemos uma sociedade sem música, sem cinema e sem fotografia. Uma sociedade que destrói instrumentos, discos, filmes e livros, em que até os manequins ficam sem cabeça. Uma sociedade que apaga, silencia e mata mulheres, que apaga, silencia e mata a cultura. Imaginemos essa sociedade, não no passado, quando a Inquisição queimava as bruxas, ou mesmo quando os nazis destruíam livros, mas hoje.

Parece irreal, mas essa é a realidade no Afeganistão de 2024.