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Celebramos cinquenta anos desde as primeiras eleições livres, o dia em que as mulheres puderam votar pela primeira vez. Depois do tanto que penámos, sob o jugo de uma longa ditadura, demonstrámos, naquele primeiro ato eleitoral em liberdade, toda a fome acumulada de democracia. Filas de eleitores esperaram horas em pé para poder votar. As cruzes deixaram de ser omnipresentes nas paredes das escolas e passaram a ser depositadas no boletim de voto. E a palavra “urna” deixou de ser apenas associada à morte, de soldados na guerra, de torturados pela PIDE, de doentes sem acesso a cuidados de saúde, de crianças pela elevadíssima taxa de mortalidade infantil.
Cinquenta anos passados e com a proximidade de vários atos eleitorais seguidos, fala-se em “cansaço eleitoral”. A instabilidade política, reduz as legislaturas a “miniciclos” e andamos de campanha em campanha a tentar desempatar maiorias irrisórias, numa giga-joga de conjeturas e antecipações de possíveis acordos pós-eleitorais. Simultaneamente, cresce o populismo de extrema-direita que quer associar (à força do marketing desonesto e da repetição ad nauseam) democracia e corrupção.
Chegados aqui e cientes que temos de defender a liberdade que tanto nos custou a conquistar e que tanto nos deu em desenvolvimento, não podemos engrossar o coro do cansaço, porque isso significa deixar vencer quem quer dar má fama à democracia. Temos de convocar os democratas para o entusiasmo do voto, mesmo que tenha passado pouco tempo, mesmo que não estejamos galvanizados pela campanha, mesmo que não haja nenhum candidato que nos encha as medidas. E se não o fazemos por esta eleição em particular, há que fazê-lo pela nossa democracia, pela escola pública, pelo SNS, pelos direitos das mulheres e das minorias, pelo direito à habitação.
Se não vamos entusiasmados com o candidato X ou Y, vamos entusiasmados pelo ato de votar. Se não vamos animados porque ainda há um ano lá fomos, vamos contentes por termos o direito a ir às urnas, uma e outra vez e quantas vezes for preciso. Porque houve muita gente que lutou e morreu por esse nosso direito. Porque houve muita gente que sonhou com um país onde pudéssemos escolher e chega a ser insultuoso para essa memória histórica estarmos cansadinhos de votar.
Chega a ser patético sermos os meninos mimados que perderam a memória da fome e que se recusam a comer o que está no prato. É triste termos o armário aberto com roupa à disposição, mas estarmos enfadados porque não nos apetece nada do que ali está e preferimos fazer birra gritando alto que não temos nada para vestir.
É óbvio que temos razões de queixa, problemas a resolver, poucos políticos mobilizadores, mas por isso mesmo, ainda assim, e pela memória de Abril, temos o dever do voto, o dever do voto celebrado, por todos os que lutaram pelo direito.