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Não volto a viajar para o estrangeiro sem antes conferir junto do Vaticano a agenda do Papa Francisco. Não quero que suceda outra vez o que aconteceu na semana passada em que ambos - o Papa e eu - chegámos ao Rio de Janeiro no mesmo dia, embora com algumas horas de diferença. Não é que eu não simpatize, pessoalmente, com o chefe da Igreja Católica, bem pelo contrário, até acho que ele poderá dar um grande contributo para combater a pobreza e as desigualdades sociais no Mundo. O que sucede é que ele virou o Rio de Janeiro de pernas para o ar e dificultou-me a vida como nunca ninguém o tinha feito. Só ele motivou o encerramento das ruas e avenidas por onde se deslocava (e as adjacentes) e mobilizou tantos soldados e polícias que até o Paulo Portas se havia de sentir incomodado com tanta segurança. Mas, como se isso não bastasse, parte significativa da cristandade mundial convergiu para o Rio para ver sua Santidade, aumentando até ao limite o caos numa cidade já, tradicionalmente, muito desorganizada. Para além de tudo isso, a parte mais irreverente da cristandade assentou arraiais em Copacabana, uma zona que eu tinha de atravessar duas vezes por dia para cumprir os objetivos que me levaram ao Brasil. Aí se instalou a Jornada Mundial da Juventude, essa espécie de Woodstock do Papa Francisco, que atraiu jovens católicos de todo o Mundo, principalmente da América Latina.
Milhares de rapazes e raparigas agrupados em torno de bandeiras dos respetivos países, dirigidos ou não por padres, percorriam as ruas da Cidade Maravilhosa, entoando cânticos religiosos e/ou canções cristãs e gritando palavras de ordem relacionadas com o evento que os trouxera ao Rio de Janeiro. "Esta es la juventud del Papa!" foi, seguramente, o slogan mais gritado pelos milhares de jovens latino-americanos durante a presença de Francisco no Brasil. Dir-se-ia que a Cidade Maravilhosa, tradicionalmente, mais voltada para os prazeres do pecado (se é que existe pecado do lado debaixo do Equador), foi, por uns dias, envolvida pelas brumas da bem-aventurança e pelo caos nos transportes públicos.
O dia mais terrível para mim foi o da quarta-feira, dia 24, ao fim da tarde, quando regressei de Niterói. No barco, que atravessa a baía da Guanabara ligando as praças Araribóia e 15 de Novembro, grupos de jovens cantaram e gritaram incessantemente que eram a juventude do Papa, enquanto a um canto um casalzinho totalmente alheio à militância mística dos companheiros se deixara envolver pelas névoas da concupiscência e atentava ostensivamente contra a castidade, beijando-se com um fervor claramente pecaminoso (se é que, insisto, existe, realmente, pecado no hemisfério sul).
Ao desembarcar e como fosse impossível apanhar um táxi, tive de completar a viagem de ónibus (autocarro). Lá me pus numa fila (no Brasil não há bichas) e esperei, como todos os outros, que chegasse um. Depois, foi o lento sacrifício da subida: cada passageiro tem de pagar a viagem logo à entrada e a lotação do ónibus só fica completa depois de já não caber mais nenhum passageiro. E, assim, fui eu, do centro do Rio até quase a Ipanema, em pé, todo torcido, pisando e sendo pisado, sempre com jovens a exibir a felicidade mística (e algo artificial) de serem seguidores fiéis do seu líder religioso.
A Jornada Mundial da Juventude foi, mais até do que um Woodstock dos católicos, a indicação de que o Papa Francisco parece ter adotado o culto da personalidade como forma de exercer a sua liderança, sugerindo mesmo que uma espécie de peronismo religioso se está a instalar no Vaticano. A devoção com que milhares de católicos veneravam publicamente o seu chefe espiritual lembrou-me outras épocas e outros chefes a quem os povos manifestavam idêntica veneração. Hoje, mutatis mutandis, dedicação tão autêntica a um líder só mesmo na Coreia do Norte.
O culto da personalidade nunca leva a bom porto e eu, sinceramente, não sei quais os objetivos que, com esses métodos, o Vaticano pretende atingir. Uma coisa é motivar a adesão consciente a valores e a princípios de ação, outra - bem diferente - é fazer com que as pessoas se anulem como seres pensantes para seguirem irracionalmente um chefe.