"Nunca ninguém escreveu para música já composta como o poeta José Carlos Ary dos Santos" - Tordo, Coliseu do Porto, 2 de fevereiro de 2019.
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Fernando Tordo não se cansa de explicar como tantas vezes trauteava uma melodia, desafiando o poeta para, em jorro incontido, receber versos perfeitos, acabados, colados à música como quando a música vem a seguir.
"... em cada verso há um homem que não chora/ e futuro é o sítio onde se mora/ cantar é ser um pássaro de esperança/poisado no olhar de uma criança/que de olhar nunca se cansa".
Este deslumbramento com o poema, verdadeira alma das cantigas, é uma qualidade que já poucos têm. Os que compõem e os que ouvem. A emoção de Fernando Tordo sempre que volta a cada letra é contagiante e ajuda-nos a reencontrar um património luminoso e desassombrado.
"... chegam uns meninos de mota/com a china na bota e o papá na algibeira/são pescada marmota que não vende na lota / que apodrece e não cheira/porque o tempo/ é derrota".
Consciente da responsabilidade de passar um património, que sendo tão incrivelmente seu, tem de ser de todos e por todos compreendido e cuidado, Fernando Tordo aposta em parcerias com músicos mais novos, ou de outros géneros e fá-los vocalizar o tecido finíssimo de Ary dos Santos.
Muitas vezes com evoluções extraordinariamente conseguidas. Como a de Ricardo Ribeiro, entre o fado e o flamenco.
"... nas tuas mãos paradas no lençol/que é feito de ternura amarrotada/à espera do primeiro raio de sol/que toque no teu corpo - Madrugada!" .
Nesta dupla de música e poesia perpassa ainda um Portugal a querer nascer de novo e Fernando Tordo é a experiência viva de uma luta que também passou pelas cantigas. Com alegria e com esperança.
Devemos-lhe a vénia que se faz a um maior e a atenção que se presta a um sábio. Porque conhece e vê como ninguém esta terra que ainda canta.
"...foi capaz de mentir/foi capaz de calar/É capaz de chorar e de rir, /Tem um quê de fadista, /Tem um quê de gaivota. / E a mania que há-de ser artista. /Quando vê que precisa/É capaz de roubar, /Mas também sabe dar a camisa./Qual o nome afinal/Deste amigo que eu canto? /Pois é claro que é /Portugal".
*Analista financeira