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Deixou-me muito inquieto, o "A chalupa" do Amadeo de Souza-Cardoso, um dos quadros que esteve em exposição no Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto, no final de 2016.
As reproduções disponíveis online, como todas as reproduções, não lhe fazem, de todo, justiça. Só ao vivo é que nos magoam aqueles traços, as águas que se levantam contra o barco como facas que se misturam naquele céu azul que ameaça. Ou nos ensinam sobre a coragem dos que as sabem no horizonte e, ainda assim, enfrentam os gumes que fazem doer duas vezes, o vento que rasga a pele e o sal que a faz arder.
Amadeo pintou em 1916 apenas um barco num mar encrespado e esmagado por um céu pesado, mas isso em 2018 define o estado da Humanidade. Há barcos com rumo certo para continentes à deriva, que vão fugindo, covardes, de famílias que nada mais têm a não ser o pequeno convés das suas tristes chalupas.
No Mediterrâneo ou à saída do México, há pessoas que resistem de frente à inclemência dos elementos por uma vontade maior de poder ter melhor. Não contavam com o pior, não sabiam de Ruy Belo: "Olhai agora ao cair quotidiano da tarde/ a linha humana dessa fronte/ Aí qualquer coisa começa/ Não há na natureza à volta tão terrível horizonte/ nem nada que se pareça."
JORNALISTA