Foi nas paragens mais remotas que o fado de ser português sempre teve, para mim, em contactos mais ou menos triviais, uma tradução: futebol. Era uma triste sina a de ser reconhecido no estrangeiro apenas pelas glórias do desporto-rei nacional. Eu, que de bola tenho um conhecimento razoavelmente gasoso, aguentei-me sem dificuldade à retórica sobre Eusébio que um velho sábio desferiu em Assuão, no Egipto, enquanto aguardava o barco que cruzaria o Nilo e nos levaria à ilha de Elefantina. Notoriamente mais acanhado, enfrentei um militar burocrata em Ndjamena, no Chade, conhecido por deixar a marinar dias a fio jornalistas ansiosos pela emissão das quatro autorizações necessárias para viajar e reportar o desastre humanitário junto à fronteira com o Sudão. Foi a referência "Porto" no passaporte que me salvou: "Sou do F.C Porto, sabia?", disse-me, enquanto ajustava o revólver ferrugento, sem esconder a excitação de conhecer um "portista" oficializado pelo documento de quem - imaginava ele - podia discutir as virtudes de um tal de "Octávio Machado" que a pronúncia tosca só permitiu identificar à terceira tentativa. Do quase monólogo de uma tarde e à custa do F.C. Porto acabaria por ganhar as quatro licenças de uma assentada e... a inveja dos outros jornalistas estrangeiros.
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De uma passagem mais recente por Luanda, recordo o balcão da velha Mexicana, repleto de garrafas Nocal, e o olhar cúmplice de um portista que, a altas horas da madrugada, explicava a um infeliz benfiquista, também angolano, que "viver das glórias do passado não é futebol, é coisa de museu".
Nas minhas deambulações pelo Mundo nunca me falaram da invenção da via verde, nem da excelência dos pastéis de nata quando me perguntam a nacionalidade. Mas ainda hoje vejo o entusiasmo de um estudante que conheci numa sala sombria onde se jogava snooker em Mosul, num breve intervalo da guerra iraquiana, e da força com que me puxou para mostrar as centrais de um jornal amarelecido, coladas na parede, onde Figo progredia com garra num qualquer relvado italiano.
Foi com estas e tantas outras histórias que a minha condição de português em viagem sempre me atirou para conversas de circunstância sobre craques da bola.
Daí a minha estranheza quando, há dias, um vendedor de queijos em Metsovo, antigo reduto otomano na Grécia profunda, concluiu a pergunta de sempre com um ar inesperadamente conivente: "Ah, vens de Portugal, outro país em crise". Disse-o com uma enigmática expressão, entre o desprezo e a cumplicidade na desgraça, como nunca antes observara. Podia ter falado das expectativas gregas e do seu selecionador português para o Euro 2012, mas nunca pronunciou o nome de Fernando Santos. Tinha outra preocupação: "Se a Grécia sair do euro, vocês são os próximos, não é?".
Dias depois, em Nafplio, ainda pensei que o descontraído dono do bar na rua Spiliadou fosse comentar a renovação de Jesualdo Ferreira pelo Panathinaikos. Em vez disso, mal soube que o interlocutor era português, preferiu saber como a crise se estava a viver por cá e, num gesto de solidariedade próprio das catástrofes, ia explicando como por lá se sobrevive. Na aldeia de Stemnitsa, nas remotas montanhas da Arkadia, Nena Grintzia podia muito bem ter levado a nossa conversa para o ido 2004, o ano da humilhação grega no frente-a-frente com uma seleção das quinas incapaz de fazer história. Mas da boca da antiga professora só ouvi perguntas sobre cortes orçamentais. De bola, nem uma palavra.
É irónico ser na Grécia de Fernando Santos, que ontem garantiu o apuramento para os quartos-de-final do Euro, que por estes dias Portugal seja tudo menos o país do futebol. Talvez depois das eleições deste domingo percebamos melhor o porquê.