O célebre e imortal "sound-bite" dos "prognósticos só no fim do jogo" nunca havia sofrido revés de tal monta. Após o empate com os EUA no jogo-do-meio da fase de grupos do Mundial do Brasil, prognosticar a porta de saída antes do próximo embate é a arte da facilidade e da aposta pela certa. Mesmo dentro do cálculo matemático que tantas vezes nos caracteriza, a familiar calculadora de mão é ultrapassada pela lógica e pelo relógio que conta as horas: a selecção portuguesa faz o seu último jogo na próxima quinta-feira e vem para casa. Adivinhar o futuro nunca foi tão fácil. Nunca mostrámos futebol que fosse digno de merecer continuar na prova e a nossa inconsistência e falta de intensidade neste Mundial só podem ser comparáveis às selecções das Honduras e dos Camarões. Mesmo a Espanha, eliminada com estrondo, acabou por jogar uns bons furos acima da selecção nacional. E mesmo que acabemos por ganhar ao Gana, num assomo de raiva que mostre futebol que se veja, já vimos passar o comboio para os 1/8 de final enquanto chegávamos dolentemente à estação. Porque entregámos o nosso destino - aquele que o Gana nos tinha restituído intacto ao empatar com a Alemanha - nas mãos de dois treinadores alemães em selecções distintas e porque nos deixámos arrastar à mercê de uma diferença de golos ridiculamente inultrapassável. Fazer de conta que podemos passar a fase de grupos é jogar o jogo do cinismo, acabando a marcar golos na própria baliza (só falta, de resto...) e a desancar na pouca auto-estima que nos sobra. Libertem Portugal deste Mundial. Já fomos e merecemos vir.
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É evidente que todos desejamos ardentemente o contrário, agora que nos empurraram para um encontro alegórico entre astros e deuses pagãos, ciências ocultas e escolas divinas. É inevitável que, contra o Gana, olhemos uma ou outra vez para as contas do grupo para ver que elas... são mesmo assim. E mesmo perante as evidências, não vamos deixar de espreitar o jogo das potências teoricamente apuradas caso o Gana não abra a contagem na meia hora inicial. Mas até lá, perante este jogo com os EUA que acabou já na véspera de S. João, não nos martirizem mais com hipóteses e "ses"! Ocupo-me com a memória de uma outra noite de véspera de S. João, 23 de Junho de 1984, onde merecemos ser felizes, mas acabámos eliminados pelo nosso arrojo e deslumbramento.
Ao não conseguirmos congelar o jogo da França do (já) então todo-poderoso Platini, desatámos num verdadeiro choro colectivo por uma equipa perto do milagre e por um conjunto de homens comandados por uma junta de treinadores (Fernando Cabrita, José Augusto, António Morais e Toni) escolhidos "à la carte". Nesse Euro"84 em solo francês, amputado pelos falhanços da Inglaterra, União Soviética, Checoslováquia, Itália e Holanda na fase de qualificação, a França contava com tudo, mas menos com um Jordão a dar-nos o prolongamento e a fazer sonhar com dose dupla até 6 minutos do fim, com Chalana em hipérbole futebolística, com Lima Pereira e Eurico (a "minha" dupla de centrais de infância) a reinventar solidez, com Diamantino a trocar os olhos, com a solidez de Sousa, Álvaro, Frasco e Jaime Pacheco, com Bento a sentar Damas no banco onde estava Carlos Manuel e com Gomes e Nené a saltarem desse mesmo banco para refazerem o jogo. E com João Pinto, ele mesmo, fazendo tábua rasa dos prognósticos que haveria de celebrizar mais tarde.
Nessa noite, véspera de S. João, abri a pesada porta de ferro e subi as escadas gigantes que afunilavam perto do fim do seu lanço até ao primeiro patamar, bem junto à porta da casa do meu avô, quase ao lado do jardim de S. Lázaro. Chegava mais tarde do que o habitual para uma noite de S. João, o jogo tinha acabado tarde, ainda por cima com prolongamento. Da janela da sala, à distância alta daquele primeiro andar, ainda era bem possível sentir o jogo de contrastes. Era quase meia-noite, o fogo-de-artifício estava na fase de aquecimento e as pessoas na rua lá em baixo tentavam sovar a tristeza em troca de uma noite sem regras, sem horas para dormir ou tempos regulamentares para serem felizes. Mas tanto eu, miúdo à janela daquele primeiro andar alto da casa do meu avô, como aqueles que eu via, multidão que não olhava esta noite para o céu só à procura dos balões de S. João, partilhávamos o mesmo olhar vago. A noite teria outro olhar se o resultado fosse outro. Já ontem à noite, véspera de S. João, aposto que ninguém chorou por futebol.