Entramos numa fase decisiva do ciclo político aberto pelas eleições legislativas de 2015 e pela formação da maioria parlamentar de Esquerda que construiu uma solução de Governo inédita na história parlamentar da Segunda República.
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O êxito financeiro, económico e político conquistado nos primeiros dois anos de governação foi agora certificado, triunfalmente, pela eleição de Mário Centeno para a presidência do Eurogrupo - uma instituição que despudoradamente humilhou os países endividados, que rotulou como inúteis e preguiçosos os povos da Europa do Sul e que só não expulsou a Grécia da União Monetária graças à inteligência do primeiro-ministro grego e ao súbito rebate de consciência que no último instante desencadeou a intervenção do presidente francês e da chanceler alemã. Quem se recorda do desprezo e da galhofa com que a atual Oposição e grande parte dos comentadores oficiosos acolheram os cenários macroeconómicos pacientemente explicados pelo atual ministro das Finanças desde a primavera de 2015, dificilmente compreende como pode sobreviver no universo mediático gente tão obtusa e descarada! Gloriosamente vencido um desafio de resultado tão incerto e improvável, abre-se uma etapa nova no atual ciclo político.
2. Inevitavelmente, persistem insuficiências graves em setores fundamentais da Administração Pública com especial visibilidade em áreas como a defesa e a segurança, a proteção civil ou os cuidados de saúde. Continuamos a pagar os penosos custos da degradação longa, continuada e irresponsável da generalidade dos serviços públicos que o Governo anterior promoveu com exuberante militância. Mas foram os incêndios florestais do ano passado o que veio expor, de forma trágica, a conjugação perversa de fenómenos novos - as alterações climáticas! - com negligência ancestral de governos sucessivos de diversas cores que conduziram à "desregulação" florestal e ao despovoamento do interior do país. Assim se alargou a distância entre governantes e governados, alimentando a desconfiança dos cidadãos perante as instituições da República, os agentes políticos e o poder central. E aqui se inscrevem os desafios que temos pela frente na segunda metade da corrente legislatura e que se podem sintetizar em duas temáticas críticas. Primeiro, as que se incluem no âmbito da "Comissão eventual para a transparência no exercício de funções públicas", criada há quase dois anos! Segundo, a descentralização administrativa - que se distribui por diversas iniciativas do Governo e da Assembleia da República. Uma e outra ficarão como marcas indeléveis do ímpeto reformador de que forem capazes este Governo e esta maioria. A reforma do Estado, sucessivamente adiada e sistematicamente iludida durante os quatro anos da legislatura anterior, pode finalmente materializar-se quer na satisfação de requisitos mais exigentes de publicidade e transparência quer na audácia do processo de descentralização.
3. A descentralização administrativa envolve uma larga panóplia de questões, desde a correção dos agrupamentos de freguesias decretados pelo Governo anterior, até à composição e articulação de competências das assembleias e das câmaras municipais. Sublinhe-se que ao nível supramunicipal, o programa de Governo contempla dois compromissos decisivos. Por um lado, a criação e a legitimação democrática das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Por outro, a consolidação das áreas atuais das comissões de coordenação e desenvolvimento, que deverão servir de matriz a um processo de desconcentração administrativa que nelas consiga localizar todas as competências de planeamento e desenvolvimento cujo tratamento se considere manifestamente inadequado à escala municipal ou intermunicipal. Ainda que a legitimação democrática das regiões administrativas permaneça refém da desastrosa revisão constitucional de 1998, é indispensável caminhar no sentido de transferir para a escala regional os projetos de desenvolvimento e reordenamento florestal que a catástrofe dos incêndios de verão tornou inadiáveis. Esta será, porventura, a mais importante reforma do sistema político democrático. A emergência de um nível intermédio entre os municípios e o poder central dá um sentido concreto à responsabilidade cívica e à prestação de contas. Reabilita a ação política e os seus agentes. Qualifica o regime e a cidadania.
* DEPUTADO E PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL