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Há quem diga que o caso que envolve a humorista Joana Marques e a dupla de cantores Anjos é um processo que desperdiça tempo e recursos. Quando, no primeiro dia do julgamento, se arranca com uma análise a "uouous", eu não consigo concordar com a maioria. Foi um julgamento que, por coincidência, esbarrou no da Operação Marquês e é capaz de ter sido quase tão mediático como o que envolve um ex-primeiro ministro de Portugal. O burnout dos jornalistas que são chamados para acompanhar estes casos é tal, que eu só espero que tenham dado férias à jornalista Tânia Laranjo em agosto.
Eu também fui até ao palácio da justiça assistir às sessões de julgamento e posso adiantar que como palácio deixou muito a desejar. Foram sessões que mereceram “dress code” apropriado, como se de um festival de verão se tratasse: roupa leve e clara, água fresca e leque. O calor era tal dentro da sala, que começo a acreditar naqueles chatos que dizem que os humoristas vão para o inferno. Isto é que devia encher as notícias. Não tanto o conteúdo do que se passa dentro da sala do tribunal, mas o tribunal em si. Como é que um órgão de soberania não tem uma coisa tão básica como ar condicionado dentro das salas? Como é que a palavra é o fundamental e tem de se interromper permanentemente o pensamento porque de repente passou um avião que vai fazer escala em Frankfurt? Juro que estive quase a propor fazer-se isto na minha sala, que ainda no outro dia mandei instalar vidros duplos.
Este processo baseou-se numa história que devia ter sido assim: se há limites para o humor? Há. Os que estão tipificados e previstos na lei. E o humor pode ofender, na medida em que as pessoas têm as mais variadas sensibilidades. Pronto. Obrigada e resto de bom dia. Mas não. Por isso mesmo, fui com um caderno e uma caneta para tirar notas para aprender sobre a minha profissão, porque pode dar-se o caso de que o trabalho de um humorista não seja o de fazer rir. E deve ser uma ideia tão complexa, que definir a própria profissão da Joana Marques foi um trinta e um. A determinada altura, foi classificada como radiologista. Deve ser porque às vezes no “Extremamente desagradável”, a Joana vai tão a fundo, que se confunde com um raio-x.
Podemos dizer que a sexta-feira, o dia das alegações finais, funcionou como uma espécie de resumo Europa-América de todo este caso mediático. De um lado, a equipa de defesa da Joana, que começou por revisitar a figura do humorista ao longo da História, demonstrando que em regimes arcaicos e opressores, o humor foi encarado como o discurso não sério que é. Um dos advogados, para além de trazer imensos artigos e leis, também falou em latim e não sei quanto a vocês, mas eu quando oiço alguém a dizer frases em latim, para mim está resolvido. Se fosse juíza, pegava no martelinho e, bom, íamos todos para casa. Do outro, a acusação da tentativa de arrasar com a carreira de uma banda. Se isso é verdade, temos de nos perguntar sobre o quão sólida é essa carreira para ser arrasada com um pequeno vídeo daqueles. Se fizeram da humorista o lobo mau, então pode intuir-se que a carreira em causa é a casinha de palha. É que me parece que vídeo em causa é claramente uma montagem humorística, a menos que os jurados dos “Ídolos” fossem loucos por motociclismo e estivessem todos naquele dia em Portimão a avaliar uma performance musical.
Que os visados se sentem magoados, ninguém duvida. Que tenham tido comentários terríveis, também não. Sobre se isso merece uma condenação em tribunal porque a humorista é responsável por tipos sinistros que comentam em “caps lock” e sem foto de perfil, é outra conversa. Por exemplo, no outro dia, num programa da manhã, um dos lesados acabou por admitir que não foi fácil gerir os ânimos da sua equipa devido aos comentários sobre aquela performance, porque muitos deles são, e cito, "rudes". Ou, numa das sessões de tribunal, foi dita a frase "ser comparado a uma Maria Leal não é o momento alto de uma banda". E é possível que tanto membros do staff da banda como até Maria Leal não tenham gostado dessas opiniões. Também por causa dos comentários que a dupla de cantores recebeu, a humorista foi classificada como incendiária porque, e cito, "largou um fósforo num fardo de palha". Bom, se realmente esses indivíduos que comentaram coisas horríveis acharam que o vídeo da Joana que diz "assassinaram a música" era literal, é estranho ainda haver palha, porque já a deviam ter comido. Mas é curioso que possa haver pirómanos verdadeiros a ter sentenças mais leves que ter de pagar mais de um milhão de euros. Tudo bem, pode não se gostar de humor. Agora não é coerente dizer que se gosta muito de humor e não se tem problema nenhum com piadas, e depois ter promovido tudo isto. Não combina.
Pessoalmente, o que me move é poder continuar a exercer a minha profissão e a viver num regime democrático mas também nas alegações finais foi insinuado uma espécie de complot que envolve todos os humoristas para prejudicar intencionalmente esta dupla de cantores. E eu fiquei muito magoada porque, apesar de não estar interessada, ninguém me convidou para esse clube. Se me nascer uma única borbulha, estão tramados comigo.
Este processo [Anjos vs. Joana Marques] baseou-se numa história que devia ter sido assim: se há limites para o humor? Há. Os que estão tipificados e previstos na lei. E o humor pode ofender, na medida em que as pessoas têm as mais variadas sensibilidades. Pronto. Obrigada e resto de bom dia. Mas não.