Estão andados dez dias desde o início da invasão. Dez dias, mas parecem anos. Há mais de cem anos, John Reed escreveu o "Dez dias que abalaram o Mundo", uma cartilha apaixonada pela revolução bolchevique que terá, conta-se, entusiasmado Lenine. Espero que estes nossos dez dias não tenham um impacto tão telúrico na História da Humanidade (para o bem; e para o mal). É que os balanços muito curtos são arriscados, quase tanto como as previsões.
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Com este cuidado de humildade, suponho que se possam já definir algumas constantes e novidades. Confirma-se o apetite voraz desta Rússia "de" Putin relativamente à Ucrânia, assim como a propensão para desestabilizar gravemente Estados que antes integravam a União Soviética. Geórgia, com a captura da Ossétia do Sul e a oeste da Abcásia; na Ucrânia, em 2014, a anexação da Crimeia e a ocupação de facto de parte do Donbass e, agora, isto; e confirmação da captura política total da Bielorrússia.
Há depois uma série de novidades relativas. Pela primeira vez neste século (quanto à Rússia), Estados Unidos, NATO e, principalmente, União Europeia, agiram a uma só voz, estão a reagir a uma só voz. Finalmente, muitos interiorizaram que a defesa não é coisa que se compre em saldos num supermercado, exige investimentos de longo fôlego, sem métricas absurdas que apenas disfarçam a ausência de estratégias integradas e objetivos partilhados. A Alemanha, nesta questão, causou uma surpresa daquelas, e, de uma assentada comprometeu-se já com um investimento em defesa que mais que duplica o do Rússia. A ver vamos.
Novidade má é o próprio facto da guerra. Pode este ser adoçado com as referências à coragem e pundonor ucranianos (referências mais do que merecidas), mas, no fim do dia, o que fica é o cheiro a destruição, a violência e a morte. Ao décimo dia, isso sente-se de forma mais crua em quem vê o seu país e o seu povo a serem feridos, sem uma possibilidade proporcional de defesa.
A Rússia, depois de uma fase inicial para inglês ver, age no terreno com pouco respeito por regras elementares do direito dos conflitos armados. Veja-se o ataque lançado contra uma central nuclear e o bombardeamento de edifícios civis.
Cuidado, porém, porque quando acusamos estamos sujeitos a um ricochete que dói. A Rússia foi acusada de já ter utilizado uma bomba de fragmentação neste conflito - e as vítimas destes engenhos são, quase sempre, civis. Não duvido que o tenha feito.
Recordo, depois, que a Convenção que proíbe as munições de fragmentação entrou em vigor em 2010. Portugal é um dos 110 Estados-Parte. Mais um caso para termos orgulho no nosso compromisso com o direito internacional e regras de Humanidade.
Só que...há muitos que nem sequer assinaram o tratado em causa, e defendem terem o direito de usar este tipo de armamento. Rússia e a Bielorrússia, para começar (os suspeitos do costume). Mas além deles, Estados Unidos, China, Índia, Israel, Paquistão, Irão, Brasil e Argentina. E no continente europeu, já todos ratificaram, com certeza? Não. Dos ausentes mais significativos, Polónia, Roménia, Letónia, Estónia, Turquia, Grécia, Finlândia...e Ucrânia. Talvez estes dias sombrios nos façam, ao menos, olhar com outros olhos para a proibição do uso da força internacional, e para os limites de decência num conflito. Qualquer conflito.
Não será este, porventura, o tempo de limpar armas. Mas é, sempre, o tempo de continuarmos a agir em apoio da Ucrânia e do seu povo que sofre. Até onde pudermos ir.
*Professor da Faculdade de Direito da UCP-Porto