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O presidente da República lançou ontem um lancinante te apelo ao Governo. Numa entrevista concedida à TSF, Cavaco Silva considerou ser "impossível impor mais austeridade" ao conjunto (já muito amplo) de portugueses que fazem parte da agora denominada classe dos "novos pobres".
Quer dizer: para o caso de ainda ter dúvidas, o primeiro-ministro ficou a saber que novas medidas de austeridade dirigidas à classe média (é aí que nascem os "novos pobres") merecerão o mais vivo repúdio do chefe de Estado. Vale o mesmo dizer: estando nós (muito) longe de poder dar como certa a possibilidade de o Executivo não remexer de novo no bolso dos contribuintes e no orçamento das famílias, Cavaco Silva está disposto a abrir uma crise política, caso Vítor Gaspar chegue um dia ao gabinete de Passos Coelho com a má notícia - apesar de todos os esforços, temos que pedir mais uns cobres aos lusitanos, para equilibrar as contas.
A dedução salta das palavras do presidente da República, para quem as medidas de austeridade "não têm em conta as especificidades" dos grupos sociais atingidos. E não, não é apenas dos pensionistas que Cavaco está a falar - é também das famílias endividadas, dos funcionários públicos, dos micro, pequenos e médios empresários... Isto é: está a falar dos grupos que arriscam ser atirados para as margens da sociedade, se a austeridade persistir e engrossar.
O presidente da República percebeu que, à falta de uma verdadeira Oposição (Seguro anda, sozinho, a balbuciar umas coisas sobre a crise; o BE está em avançado estado de decomposição; o PCP continua preso aos dogmas) e seguindo a União Europeia uma estratégia tão perigosa, alguém cá dentro tem de fazer o contraponto ao Executivo. Problema: fazê-lo de frente não só não encaixa no estilo de Cavaco como somaria agruras à agrura financeira que é, hoje, a gestão do país.
O chefe de Estado tem, por isso, de dar uma no cravo e outra na ferradura (na mesma entrevista elogiou a "coragem" do Governo). É uma estratégia que faz lembrar o "Ai chega, chega, chega,/chega, chega à minha agulha,/Afasta, afasta afasta,/afasta o meu dedal" cantado por Beatriz Costa na Aldeia da Roupa Branca.
Curioso paralelo histórico: no filme da década de 40, o grande António Silva empurra a "filha" para o palco, contra a vontade desta; no "filme" dos dias que correm, Cavaco está a empurrar Passos para uma posição defensiva em que o primeiro-ministro não deseja estar, por não controlar as variáveis que lhe permitiriam jurar aos portugueses que os sonoros alertas do presidente não se concretizarão.
Passos, que gosta de cantar, não pode perder o pio. Mas a batuta está nas mãos do presidente. Goste-se ou não, ele é, hoje, a única válvula de escape do sistema.
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