Mentiria se não dissesse que tenho a certeza que houve pessoas que, à vista do anúncio do imenso dinheiro que aí virá da Europa, terão exclamado, desanimadas, para si mesmas ou para os seus próximos: "Agora é que ninguém os tira de lá!".
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Alguns, no limiar do masoquismo, terão mesmo lamentado que o país tivesse tido essa inesperada bênção, por entenderem que esse choque financeiro contribuirá para a solidificação de um desequilíbrio político que detestam - e que acham tanto ou mais nefasto do que os males económicos do país. Muitas dessas pessoas, que estão a ler-me agora, assumam-no ou não, sabem que o que escrevo é pura verdade.
Não sou politólogo para conseguir explicar como chegámos aqui, a este entrincheiramento, que se tem vindo a agravar na última década, criando dois mundos antagónicos, alimentados por muita acidez, servidos por palavras ofensivas, pela perda de respeito pelos adversários, pelo enfraquecimento da moderação e do bom senso.
Muito desse confronto já vinha de trás, quase desde o 25 de Abril. Mas data da última crise financeira o acantonamento que colocou aqueles que viram na "troika" uma oportunidade para queimar etapas, para um choque de reforma liberal, frente a quantos recusavam ver subvertida a ordem da sociedade em que se haviam habituado a viver. Perante a arrogância dos primeiros, muitas vezes insensível e cruel, foi-se enquistando, do outro lado do espetro, uma resistência desesperada que, no limite, conduziu a um entendimento à esquerda, que nada fazia prever como possível. A "geringonça" foi a expressão parainstitucional dessa realidade, mas todos já percebemos que continua a haver mais vida à esquerda, para além dela.
O que talvez ninguém estivesse à espera é que, na outra margem política, o desvario viesse a tomar conta das hostes. Apoiado num tremendismo que raia a insanidade, campeia por aí um discurso de "finis patriae", como se o país estivesse à beira da catástrofe. O alarmismo diário dos títulos da imprensa e da demagogia das televisões, somado ao azedume nas redes sociais, tudo isso gera um caldo de imaginária instabilidade e crise, que as sondagens, sempre ingratas, se encarregam de desmentir.
O atual pessimismo do campo conservador sobre o seu próprio futuro esquece, contudo, uma realidade que o passado nos ensinou: nunca devemos subestimar a capacidade da esquerda de dar tiros nos seus próprios pés. Um dia, mesmo sem saber como, a direita lá regressará ao poder. Aliás, chama-se a isso democracia, para os que não saibam.
*Embaixador