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Nunca um deputado terá sido tão preciso no desalinhar da vulgaridade das patacoadas a ecoar no espaço público. João Almeida, do CDS, reagiu à tentativa de incrementação de um Código Animal a determinar o número de cães e gatos permitidos num simples apartamento classificando-o de "fascismo higiénico". Foi certeiro. Contribuiu para o recuo de uma intenção disparatada. E amplificou uma denúncia periódica: o atual Governo propagandeia virtudes do liberalismo, mas é fã do estabelecimento de regras de intromissão na vida privada. Nenhum pretenso guião da reforma do Estado disfarça o gosto pelo cercear de liberdades individuais - de preferência trocando direitos e deveres por mero assistencialismo.
A espaços, há governantes a tender, de facto, para "aprisionar" os cidadãos. E a par de afirmações e iniciativas estapafúrdias, já não há pachorra para apetites intoleráveis.
A área da Saúde é paradigmática. Sucedem-se os enunciados de princípios muito para lá do compreensível para a existência de uma sociedade tolerante - e harmoniosa.
Depois de terem ficado famosas as não muito distantes intenções anunciadas de decretar a proibição de fumar nos automóveis que transportem crianças devido à concentração de fumo na parte de trás do veículo (e a seguir até na casa de cada um, adivinha-se), a ameaça de "fascismo higienizador" esboça novos capítulos - no mínimo passando um atestado de irresponsabilidade aos profissionais de Saúde.
O secretário de Estado adjunto do ministro Paulo Macedo fez ontem uma ameaça despropositada: a de legislar para pôr na ordem os senhores médicos e as senhoras médicas que não cumpram as regras básicas de combate aos focos infecciosos nos estabelecimentos de Saúde.
Fernando Leal da Costa não foi de modas. Para ele há um conjunto de instrumentos, como anéis, pulseiras e alianças que são potenciais veículos de transmissão. E daí? Objetos com os quais as suas "colegas insistem, muito alindadas, em ir trabalhar". Ou seja: ele parte do princípio que os anéis, as pulseiras e as alianças são coisas de mulheres - vá lá, acha as médicas alindadas!
Não é tudo, entretanto. Os riscos estão ainda associados à "gravata nos cavalheiros [médicos], os estetoscópios que se insiste em transportar por todo o lado, as batas com que se almoça e janta nos refeitórios e com que, a seguir, se veem doentes". Ou seja: parte-se do princípio sexista de que só os homens usam gravatas. Pronto. Dá-se de barato serem de ambos os sexos as más práticas no uso de batas e estetoscópios....
Se os ditos visavam ter piada, o efeito, sinceramente, é o contrário.
O secretário de Estado, assim como assim, não descartou a hipótese de legislar - "sem dificuldade", disse -, embora seja antes adepto de uma política de consciencialização. E anunciou-a segundo parâmetros originais: "Isto não se resolve só com a cenoura, também não se resolve só com a chibata. Temos de fazer um equilíbrio, de forma a que a pessoa que está entre a cenoura e a chibata sinta a vontade de fazer melhor". Ou seja: fica a pairar mais um cenário de "fascismo higienizador" para o caso de continuarem a entrar onde não devem gravatas, pulseiras e alianças. Quando tudo se resume a médicos bons e médicos maus.
É assim que estamos.
Enganaram-se os mais bem-intencionados. O desastre da comunicação associado à ameaça planificadora para tudo não é apenas do primeiro-ministro. Passos Coelho tem muitos discípulos.