Os bons fados da descentralização cultural
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Com o 25 de Abril, a expressão descentralização cultural rapidamente começou a circular, até porque o Movimento das Forças Aramadas (MFA), no seu afã de levar o credo democrático aos gentílicos, criou as "Campanhas de dinamização cultural e ação cívica" no sentido de incentivar a participação cívica dos cidadãos de um país em estado letárgico, em que a interioridade era um fado ao qual era dificílimo escapar.
O país que fomos construindo foi paulatinamente, se comparado com o esforço desenvolvimentista noutras áreas, atentando na promoção da cultura. Esta foi o último setor social a beneficiar, por volta de 2000, com o pioneiro Programa Operacional da Cultura (POC), de programas comunitários de incentivo. Demorou muito a convencer os governos da bondade do investimento descentralizado em cultura... Lá se criaram, em boa hora, bibliotecas, cineteatros, museus, salas de exposições, etc., mas foi sendo sempre deixada para segundo plano a sua programação e, nos anos subsequentes, deparamos com belos equipamentos vazios de vida, quando não fechados - a cultura é um luxo caro, que é difícil medir em termos de impacto económico e social a curto prazo. E conjugar economia e cultura era tido por um pecado quer do lado dos responsáveis políticos quanto dos próprios agentes culturais.
Hoje, as coisas mudaram, certamente não o suficiente, mas muito, e o poder autárquico que o 25 de Abril permitiu florescer foi altamente responsável por essa mudança, com orçamentos dirigidos para a cultura que fazem ver ao poder central e colmatam muitas das lacunas que aquele foi mantendo.
Trago aqui um exemplo que mostra como sinergias entre litoral e interior, centros e periferias podem ser benignos para todos: a Fundação de Serralves, na qual tenho responsabilidades desde há nove anos, ocupando hoje o lugar de presidente, criou há mais de 15, pela mão do então presidente Gomes de Pinho, um projeto de itinerâncias, intensificado nos últimos 10 de forma exponencial, contemplando essencialmente autarquias.
Tratou-se de estabelecer parcerias com um número de autarquias que hoje ultrapassa as 40, espalhadas por todo o território nacional, que integraram o quadro fundacional de Serralves em condições particulares de incentivo. O objetivo foi promover intervenções programáticas em áreas diversas em equipamentos autárquicos delas carecidos. Se inicialmente a colaboração se desenvolveu quase exclusivamente no campo das exposições de arte contemporânea - o Museu de Arte Contemporânea foi o foco inspirador da Fundação -, hoje, à medida que a missão de Serralves se foi alargando, com a criação da Casa do Cinema e da Direção de Aquitetura, a promoção do Parque e da educação ambiental, são oferecidas também exposições relacionadas com cinema, arquitectura, fotografia, ciclos de cinema, projetos e publicações sobre biodiversidade local, com programas educativos e brochuras associados, mas também conferências em torno do pensamento crítico, ações de capacitação (em mediação cultural, p.e.)...
O número destas acções está hoje na ordem das 360, num claro movimento de descentralização, o qual tem tido uma frutuosa contrapartida para a própria Fundação de Serralves com o crescente envolvimento dos municípios a participarem, saindo também eles dos seus territórios, nos Grandes Eventos de Serralves (Serralves em Festa ou Bioblitz) com oficinas educativas na área das artes e do ambiente, demonstrações de artes e ofícios (na Festa do Outono) e espetáculos na área performativa (música, dança, artes circenses, marionetas, etc.). Os territórios ganharam na aproximação à arte e ao pensamento contemporâneos com este movimento de descentralização e Serralves enriqueceu-se com a força centrípeta das culturas dos territórios descentrados. Ganhamos todos