O mais emblemático dos ex-líbris do Porto assinalou ontem os 250 anos de existência. A data, cujo rigor se perde na voracidade do tempo, não é o mais importante nestas comemorações que, de resto, se estendem durante todo o ano de 2013.
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De assinalar é a forma como a Irmandade do Clérigos arregaçou as mangas e fintou a crise com que, tantas vezes, os portugueses se desculpam para cultivarem o imobilismo e justificarem a incompetência. E como o fez? Envolveu várias instituições e empresas da cidade e do país para recuperar a torre de Nicolau Nazoni e a anexa capela de Nossa Senhora da Lapa, onde se diz que o Porto nasceu. Parceiros investiram milhões e não é de crer que alguém esteja arrependido. Afinal, o Porto está na moda, os turistas invadem a cidade e é da torre que mais bem se observa o casario medieval.
O simbolismo do monumento levou os CTT a emitir uma edição especial de postais; a Arcádia criou o bombom "Clerigus", um misto de chocolate e canela com gengibre; a Ach Brito desenvolveu um aromatizado sabonete alusivo à efeméride. A torre, orgulho da cidade, ultrapassou as suas fronteiras. De tal forma que a Irmandade garantiu o envolvimento de editoras e autores numa celebração que se pretende singela, mas eloquente. Os agentes da cultura não se fizeram rogados: a Caminho, por exemplo, reeditou o best seller juvenil "Uma Aventura no Porto", numa versão em que Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada criam uma ação especial nas escadarias desenhadas por Nazoni. Germano Silva, Manuel Montenegro, Francisco Queiroz e Hélder Pacheco escreveram propositadamente para o efeito. O "Jornal de Notícias" associa-se ao divulgar as iniciativas. Todos juntos estão a promover um símbolo do Porto e, por assim ser, um ícone nacional. Mesmo num momento em que, neste país, ninguém pareça acreditar em nada.
A metáfora do empreendedorismo gerado à volta do aniversário dos Clérigos está longe, no entanto, de ser a regra, até numa cidade que, tantas vezes ao longo dos séculos, se caracterizou pela sua capacidade de gerar valor nem que para isso tivesse de transformar as fraquezas na sua força.
E nem sequer é preciso sair da zona da Praça de Lisboa (contígua aos Clérigos) para experimentarmos essa forma superficial - quando não pouco profissional - de ser português. Ali ao lado da torre, um moderno espaço de restauração tem tudo para agradar a quem passa. É elegante, cosmopolita, com ofertas culinárias diversificadas servidas por um batalhão de funcionários apoiados por tecnologia adequada. Os estrangeiros que nos visitam observarão naquele lugar um espaço que nada fica a dever, se visto de fora, ao que de melhor podemos frequentar na Europa. O pior é quando a experiência sensorial é vivida por dentro. De uma assentada, somos obrigados a retribuir seis vezes o solícito "boa tarde". Não porque estejamos num antro de boa educação, mas porque somos abordados por seis empregados diferentes para a mesma tarefa numa inqualificável ausência de organização de trabalho. Experimentamos uma espécie de choque tecnológico da restauração ainda a necessitar, e muito, de Novas Oportunidades. É que, à medida que a sala enche, o educado "boa tarde" dá lugar a tons de voz que se elevam e a chefs a repreender "garçons" ao balcão, à frente dos clientes. Em suma, pior do que numa vulgar e despretensiosa tasca - e tão boas - que o Porto tem. A desordem instala-se na sala porque, ao invés da atitude que a circunspecta Igreja empreendeu nos Clérigos, aqui confunde-se a forma com o conteúdo. Há falta de profissionalismo, falta de formação e desrespeito pelo cliente. Nada grave. Se o negócio falhar, a culpa está identificada: é da crise. Que, felizmente, a torre dos Clérigos não vive.