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É um acontecimento com enorme visibilidade à escala global e é exatamente isso que as ações terroristas pretendem. É um evento mediático que empurra os jornalistas para o sensacionalismo e a autocensura e isso constitui um perigo para o futuro das democracias. É uma tragédia que dissemina o medo, nomeadamente em grupos vulneráveis como as crianças, e isso implica respostas rápidas e adequadas. Estaremos nós preparados para enfrentar o impacto de um atentado tão brutal como o de "Charlie Hebdo"?
Um ato terrorista vale pela respetiva mediatização. A publicitação do terrorismo é uma arma poderosíssima e, se há situações em que os media podem travar o relato reiterado e pormenorizado de certos acontecimentos, como no caso das recentes decapitações de jornalistas por membros do Estado Islâmico, outras há em que se exige uma cobertura mediática permanente e destacada. De 2001 até hoje, evolui-se muito ao nível da mediatização do terrorismo. Qualquer retrocesso seria indesculpável.
A 11 de setembro de 2001, o ataque do segundo avião às Torres Gémeas foi calculado em função da transmissão em direto das televisões. A 11 de março de 2004, nos atentados de Madrid, conseguia-se, novamente através dos media, espalhar uma mensagem de terror a nível mundial. As imagens aéreas dos comboios destruídos na estação de Atocha e as fotos de corpos decepados captadas em planos aproximados eram arrasadoras. A 7 de julho de 2005, os atentados de Londres mostraram uma nova cobertura mediática das ações terroristas. Noticiou-se esse horror, sem mostrar ostensivamente corpos sem vida. Esse cuidado repetiu-se esta semana em Paris. Com exceção do vídeo que testemunhava (a distância) a morte de um polícia, não houve (até ontem) imagens dos corpos daqueles que morreram na redação do "Charlie Hebdo", nem de pessoas em desespero nas ruas da capital francesa. Nestes anos, os jornalistas perceberam que têm de resistir às imagens mais chocantes e com maior impacto, sem, no entanto, deixarem de dar ampla cobertura a estes acontecimentos hegemónicos. Informa-se, acima de tudo, com factos e com a respetiva contextualização.
Poderemos perguntar se Portugal está preparado para uma mediatização assim: sem planos manchados de sangue, sem peças penduradas em rostos de desespero, sem fotos que captem corpos mutilados. Adicionalmente, poderemos interrogar se os nossos políticos estão aptos a dar uma resposta rápida, multiplicada em várias frentes: na perseguição aos terroristas, na reorganização da ordem pública, na união pacífica da população para dizer não ao terror, na colaboração com os media para os ajudar a informar com rigor e equilíbrio, na assistência a grupos vulneráveis para estancar estados de pânicos. Estaremos nós preparados para tudo isto?
Anteontem, a ministra da Educação francesa escrevia uma carta aos professores, convidando-os a responder às perguntas dos estudantes sobre este atentado ou a iniciar eles próprios esse debate com "o apoio dos recursos pedagógicos que os serviços do ministério colocavam à disposição". Menos de 24 horas após a tragédia francesa, a titular da pasta da Educação procurava ajudar os mais novos a retomar alguma normalidade no seu quotidiano. No entanto, esta estratégia só será eficaz se os professores estiverem preparados para interpretar com moderação o que está a acontecer e para ler criticamente aquilo que os media vão divulgando. Circunscrevendo-nos a Portugal, reparamos que não há preocupação com a formação ao nível da literacia mediática, nem qualquer cuidado em fazer entrar a atualidade dentro das salas de aulas. Perante esta perigosa impreparação que o Ministério da Educação português vai ignorando, nunca haverá nas escolas portuguesas professores capazes de ajudar os alunos a entender o que se passa, principalmente quando certos acontecimentos entram de forma brutal nas nossas vidas.
Um pouco por todo lado, multiplica-se o anúncio de que "somos todos Charlie". Mas ser Charlie tem exigências: implica não ter medo de ser incómodo, exige distância dos poderes dominantes, pressupõe ser capaz de responder com eficácia a ações terroristas e requer que se retome rapidamente a vida de todos os dias. Estaremos nós preparados para ser Charlie?