Nas últimas décadas, a economia mundial sofreu alterações profundas a que nenhum país ficou imune. Como aconteceu aquando de anteriores "revoluções", há ganhadores e perdedores.
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Entre estes últimos estão os trabalhadores menos qualificados, os pequenos comerciantes, alguns empresários de sectores tradicionais e uma parte dos serviços, incluindo a Função Pública. As inovações (TIC e suas aplicações, novos materiais, nanotecnologia, genética, etc.) abanaram o edifício económico. Enquanto isso, no plano estratégico internacional, assiste-se a uma transferência de poder para o Oriente, de que a emergência da China como a maior economia do Mundo será a expressão última.
As consequências de todas estas alterações são transversais, questionando muito do que considerávamos adquirido e a que estávamos habituados, nomeadamente a tutela de um Estado providência omnipresente. No plano individual, estas transformações favorecem as elites cosmopolitas e têm conduzido à perda de importância, de rendimento e riqueza, das classes médias tradicionais, conduzindo a um esvaziamento do centro: em vários países assiste-se a um aumento da procura de trabalho pouco ou muitíssimo qualificado. Quem, pelas suas competências, é capaz de aproveitar as circunstâncias actuais, enriquece. Aqueles que não são capazes de se adaptar, ou resistem, à mudança, acabam por resvalar para níveis de rendimento e um estatuto social mais baixo. Aumentam as desigualdades e fomentam-se sentimentos de inadaptação, angústia e frustração. Incapazes de perceber o que se passa, e de antecipar as suas consequências, as pessoas atingidas ficam zangadas. Mas ninguém as pode impedir de sonhar. A força das propostas populistas e radicais reside, precisamente, em construir cenários em que aqueles grupos, cada vez mais numerosos, querem acreditar por encontrarem neles o espaço e protagonismo anterior. São construções apetecíveis, também, por escamotearem os respectivos custos. No essencial, são discursos contra a globalização (nos casos mais elaborados, contra "esta" globalização) e o comércio livre de que a rejeição da Europa ("desta" Europa) e do euro são, em certa medida, uma mera declinação. O que torna esse programa atractivo é a sua aparente coerência. A fonte de todos os males - o desemprego, a pobreza, a exclusão, a desigualdade - reside na globalização entendida num sentido lato. Implícita, ou explicitamente, recupera-se o proteccionismo, nacional ou europeu, consoante os casos, podendo, no limite, traduzir-se na saída do euro. Essas opções têm um preço que se faz por ignorar: um empobrecimento generalizado, com uma incidência particular nos assalariados, resultante da subida dos preços dos produtos importados; o aumento exponencial das dívidas pública e privada. Numa economia tão dependente das importações, e com empresas a trabalharem com margens tão estreitas, não é sequer óbvio que a desvalorização implícita pudesse ser aproveitada para aumentar as exportações como muitos sugerem. Acreditar que o proteccionismo, mesmo que crismado de "recuperação da soberania nacional" ou de "saída do euro", não tenha outras consequências é uma ingenuidade. Ao contrário do anunciado, o mais provável seria que não houvesse crescimento e que os salários reais, os lucros e os investimentos se contraíssem, redundando numa outra forma da espiral recessiva que se diz querer evitar. Talvez daí emergisse uma sociedade mais igual só que, por certo, mais pobre.
Muita dessa retórica pretensamente patriótica (na realidade, profundamente nacionalista) encontra campo fértil no ódio aos mercados herdado do salazarismo e é facilitada pela viciação dos partidos do "arco governamental" na chicana política. Se não forem capazes de articular uma proposta humanista, por integradora, e de crescimento, num mundo global, deixarão o campo livre ao populismo e radicalismo. As eleições europeias foram um aviso, lá fora e cá dentro.
P.S.: Este texto "copia" o artigo de Nicolas Bouzou no "Le Monde" de 28 de Maio, alertando para o perigo da Frente Nacional, inexistente entre nós. Os extremos tocam-se?