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"No livro que eu não li, no filme que eu não vi, na foto onde eu não entrei", esta canção ligeiramente enervante, dos "one hit wonder" Per7ume, descreve bem a sensação que tenho, ano após ano, sempre que saem as listas dos filmes nomeados para os Oscars. Nunca vi praticamente nada e sei que dificilmente, a não ser que me reforme muito cedo e faleça muito tarde, conseguirei pôr estes filmes todos em dia. Ainda tenho candidatos a melhor filme de 2002 em atraso.
O que acontece é que, ano após ano, fico arredada de muitas conversas entre janeiro e fevereiro. Às vezes, leio umas coisas na Net, que depois reproduzo, para conseguir participar. Frases como "Joaquin Phoenix vai muito bem no Joker" ou "O 1917 não é o melhor filme do Sam Mendes" são suficientemente vagas para não nos comprometerem. Claro que se depois perguntarmos se "Mulherzinhas" não eram uns desenhos animados que passavam na TVI nos anos 90, estragamos tudo. A grande novidade desta edição dos prémios da Academia parece ser a Netflix: que conta com oito filmes indicados ao Oscar. Ou seja, oito filmes que podem receber o mais prestigiado galardão do cinema (desculpa, festival de curtas de Vila do Conde, mas sabes que é verdade) sem nunca terem estado efetivamente numa sala de cinema. A maior sala em que estiveram foi a de um milionário qualquer, daqueles que têm uma sala de projeção em casa. Aposto que a casa de Cristiano Ronaldo, por exemplo, tem melhores condições para se assistir ao "Parasita" do que algumas salas de Cinema Nos. Mas - e podem chamar-me velha do Restelo à vontade, até porque não vou ouvir - fará sentido que as melhores produções do cinema não possam ser vistas no cinema? Também sei que não estão lá porque há lá pouca gente para ver... É a velha história do profeta e da natureza: se Maomé não vai à montanha, lá vem a montanha até Maomé. E no caso da Netflix, é uma cordilheira inteira. São várias montanhas da Paramount juntas, já que o catálogo é interminável. A Netflix é como aqueles restaurantes com ementas vastíssimas (daquelas que o chef Ljubomir quer logo reduzir para metade), em que encontramos tudo, mas a probabilidade de escolhermos mal é enorme. Aquilo que pago à Netflix, todos os meses, é gasto em horas de navegação por trailers, tentando decidir qual é o melhor. Tal como a senhora do chapéu amarelo nos anúncios da Ferrero, sei que não me apetece. Nos distantes tempos em que íamos ao cinema, tínhamos de ter coragem para apostar. Se íamos ver o filme em exibição na Sala 3, vivíamos com essa escolha. Mesmo que ao fim de cinco minutos já tivéssemos percebido que fora um erro escolher uma comédia romântica protagonizada pela Sandra Bullock, o bilhete estava pago e íamos aguentar estoicamente até ao final. Estou a "ouvir-me" e sei que estou a soar como aquelas velhinhas que dizem "no meu tempo é que era, agora as relações são todas descartáveis, os casais chateiam-se e divorciam-se logo, esta juventude não está para ter chatices". E não estamos, de facto. O que tem tanto de mágico como de assustador. Não estamos para nos chatear a ir ao cinema, correndo o risco de apanhar chuva no caminho, e um filme merecedor de poucas estrelas ao chegar, não estamos para ir jantar fora se um simpático senhor da Uber Eats pode trazer-nos comida do restaurante, não estamos para ir experimentar roupa naqueles provadores da Zara que parecem ter luzes para matar moscas, quando podemos receber a roupa no conforto do lar, não estamos para ir apalpar fruta para o supermercado se alguém pode apalpá-la por nós e entregá-la à nossa porta... Não estamos. Ou melhor, estamos sempre... em casa. Acredito que, daqui a dez anos, sejamos todos ermitas. Não numa gruta, mas num bom T3. Aliás, a cerimónia dos Oscars em 2030, posso adiantar, será assim: os nomeados ficam em casa, à espera, e depois bate à porta do vencedor um estafeta, para lhe entregar o galardão. O laureado abre a porta, faz o discurso de agradecimento durante trinta segundos, diz por quem está vestido ("optei por um pijama da Yves Saint Laurent e umas pantufas Gucci"), fecha a porta e vai dormir. Acredito até que haja aqui vantagens em termos ambientais (a Greta aprovaria) e mesmo em termos de bom ambiente na passadeira vermelha, que assim deixava de estar cheia de gente a fingir que se adora. Saíamos todos a ganhar. Até a Glenn Close, que nunca ganha.
*Humorista