<p>O presidente da República desejou ontem que o próximo ano seja marcado por "frutuosos entendimentos interpartidários" (sic) na Asssembleia da República, o "centro por excelência da democracia". Na sessão de apresentação dos tradicionais cumprimentos de Natal que o chefe de Estado recebe do presidente da Assembleia da República e respectivos vice-presidentes, membros da Mesa da Assembleia e líderes parlamentares, Cavaco finalizou com um lancinante apelo aos "entendimentos". "O país rejubilaria". Rejubilaria mesmo?</p>
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O desejo do presidente da República deve ser lido à luz dos últimos acontecimentos que puseram de acordo a (quase) unânime dos comentadores do regime: a tensão entre Cavaco e José Sócrates é evidente e, quiçá, inultrapassável. Eu não diria tanto. Até porque, enquanto forem dirigentes socialistas a roçar a inexistência, como Sérgio Sousa Pinto, a querer pôr o chefe de Estado na ordem, pequenas serão as achas colocadas na fogueira.
Há, contudo, algo de inescapável no cenário que se vai montando: as agendas do Governo e do chefe de Estado não são coincidentes. Quando Cavaco, a propósito do casamento entre pessoas do mesmo sexo, diz que há problemas mais sérios a tratar, diz a verdade. Mas não a pode dizer sem saber que haverá sempre Sérgios Sousas Pintos (um daqueles políticos que amam profundamente as causas fracturantes) a aproveitar a declaração para aparecer nas televisões. E, tensas como as coisas estão, isso chega para desencadear mais um fogo. Quer dizer: mais do que nunca, Cavaco Silva deve, mais do ficar prisioneiro das palavras, saber gerir os silêncios. O "povo" agradecerá (talvez chegue mesmo a rejubilar) essa atitude inteligente e comedida.
Ao contrário de muita gente, não estou seguro de que Sócrates esteja muito interessado em provocar eleições antecipadas o mais depressa possível. Desde logo, por saber que a protocandidatura de Manuel Alegre à Presidência da República está a encostá-lo à Esquerda mais do que o primeiro-ministro desejaria. Depois, por ter a certeza de que há já muita gente no partido a desenhar o cenário pós-Sócrates. E, finalmente, porque não é liquído que uma nova liderança do PSD, por pouco entusiasmante que fosse, não conseguisse entrar pelo eleitorado flutuante adentro, apenas e só por aparecer como contraponto ao que já existe.
De modo que, bem vistas as coisas, talvez Sócrates esteja também interessado em navegar à vista. Sim, há uma pergunta a fazer: se assim é, por que razão se avoluma a troca de piropos e mal-entendidos? Resposta: porque Sócrates precisa de saber de que lado está Cavaco. Provocando o chefe de Estado, o PS apalpa-lhe o pulso. Sobra apenas um pequenino problema: o tempo para estas "picardias" que divertem tanta gente está a chegar ao fim. O país não aguenta muito mais sem coesão entre as suas principais instituições. Os desafios que aí estão são demasiado grandes para nos entretermos com o acessório. Cavaco e Sócrates podem ter uma certeza: os portugueses não rejubilarão se eles não se entenderem.