Os invisíveis, o presidente IKEA e lamechices várias
Há cidadãos dotados de uma característica única: são invisíveis para a grande maioria. Esses são as pessoas portadoras de deficiência mental, esses são também os deficientes sociais. Os primeiros, apesar do que diz o texto constitucional (art. 71.º) e de grandes parangonas sobre integração e cidadania plena, são de facto sub-cidadãos ou não-cidadãos.
Corpo do artigo
Ainda na adolescência, expulsam-nos do sistema de ensino oficial, exilam-nos em casa ou em instituições, extraordinárias que sejam muitas delas, onde ficam "acomodados" num ghetto físico de que dificilmente se evadem, porque do ghetto social nunca saíram. O Estado dá algum dinheiro; mas, socialmente, são invisíveis. Poucos são aqueles que os fitam olhos nos olhos, menos são os que os empregam. Perturbam, apesar de haver outros (maravilhosos) invisíveis que, sem pedirem nada e sem nada publicitarem, contribuem para que a sua vida não seja a dos párias ou dos impuros. À pessoa portadora de deficiência mental costuma reservar-se uma das palavras mais detestáveis da língua portuguesa. É o "coitado": de como um só vocábulo revela o estigma.
Não menos cruel - até porque quantas vezes mais consciente - é o destino dos deficientes sociais. Aqueles que, nos tempos lúgubres que vivemos, são expelidos da carroça social, porque descartáveis: os desempregados de longa duração ou de perpétua duração, os idosos e reformados que vivem sós e miseravelmente e são olhados de lado porque, parasitas, sobrevivem "à custa" do Estado e se atrevem a não morrer.
Já foram afastados pela comunidade, quantos outros estão nas franjas do precipício. Aborrecem a vista, e muitos têm medo de um dia ficar como eles, porque agora o Estado diz que não consegue e alguns tem que sacrificar. Antes, mandavam-se para longe da aldeia para que, desaparecendo, não perturbassem a harmonia social. Hoje, e porque isso seria de mau tom, são apagados higienicamente na voragem das estatísticas. Dizem-nos: haja quem trate deles porque mudamos de paradigma. Haja uma sociedade "civil" que os vá suportando, porque a sociedade "pública" é hoje diferente. A noção de comunidade inclusiva de cidadãos está a ser assaltada com especial ferocidade por esta visionária conceção. É cidadão a 100% quem "tiver" ou "puder", será cidadão a 50% ou abaixo disso quem não tiver ainda percebido que agora é cada um por si. O fraco e indefeso (como o cidadão portador de deficiência) e aquele que ficar fraco e indefeso (como o desempregado e aquele que resvala para a desgraça) tendem a ser eliminados sem dó nem piedade. São os danos colaterais. São os invisíveis.
2. Ninguém pode queixar-se: de cada vez que o presidente da República fala, temos assunto para dias. Mais uma vez, assim aconteceu. O discurso do Ano Novo agradou ao PSD e ao PP, porque ali encontraram conforto para a sua política de austeridade e a recusa de uma "crise política"; agradou ao PS, porque o presidente enviou o Orçamento para o Tribunal Constitucional e porque, dizendo que sim ao "forte" aumento de impostos, afirmou que esta política é insustentável a prazo e utilizou a expressão mágica "espiral recessiva"; e pelas mesmíssimas razões desagradou a todos, aqui se incluindo o BE e o PCP. Daqui vem uma enorme vantagem para o presidente. No futuro, e como vem sendo hábito, sempre afirmará: eu bem disse. Porque o seu "bem disse" será, consoante as circunstâncias, o que muito bem lhe aprouver. O discurso do presidente é, politicamente, como o catálogo do IKEA: nele, cada um (incluindo o presidente) sempre encontrará a travesseira que lhe faz falta ou o candeeiro que fica bem na sala.
3. Não se deve ter medo dizer que foi feita justiça, como não se deve ter medo de apontar o dedo. Assim como critiquei a inexplicável exportação para Sul do "Praça da Alegria", assim estou aqui a realçar os novos planos da RTP de passar a produção do Canal 2 para o Porto. Parece, afinal, que os queixinhas, os choramingas e os lamechas tinham razão em lutar por uma causa justa. Agora falta o resto.