O Tribunal Constitucional (TC) mandou, ontem, o Governo trabalhar. Assim mesmo: sem misturar papas no argumentário, os juízes disseram ao Executivo liderado por Pedro Passos Coelho que não lhes cumpre dizer para que lado deve apontar a agulha da "bússola" que o primeiro-ministro pediu, quando se viu confrontado com novo chumbo do TC - essa tarefa pertence, num país normal, ao poder Executivo. "Não cabe ao TC esclarecer outros órgãos de soberania sobre os termos em que estes devem exercer as suas competências no plano administrativo ou legislativo", dizem os juízes. A César o que é de César.
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Antecipando este previsível desfecho, Passos Coelho foi a Belém pedir ao presidente da República que "obrigasse" o TC a proceder à fiscalização preventiva, ou sucessiva, dos diplomas que podem mexer nas contas do défice. Percebe-se o alcance da "jogada" de Passos Coelho: uma vez que não é possível convencer os juízes da bondade das medidas que cortam direitos e emagrecem bolsos, é preciso colar Cavaco Silva a esta equação, de forma a pressionar os chatos dos juízes.
Sucede que a "jogada" tem um risco incomportável para o chefe de Estado. Sabendo-se que correr riscos não é propriamente o desporto preferido de Cavaco Silva, por que razão haveria ele de se meter nesta embrulhada? Mais: supondo que o presidente da República pode muito bem não encontrar qualquer inconstitucionalidade nos diplomas do Governo, que sentido teria enviá-los para o TC, apenas na expetativa de que os juízes, enfim, se dispusessem a mostrar a luz a Passos Coelho?
No discurso do último 10 de junho, Cavaco tratou de recuperar o terreno político que perdera, ao sufragar, uma e outra vez, o caminho trilhado pelo Governo. Ao forçar novamente um entendimento ao centro, o presidente da República balizou com rigor aquilo que deseja: o país não pode chegar à decisiva elaboração do Orçamento do Estado para 2015 com os partidos do arco da governação tão distantes como hoje se encontram. Vale o mesmo dizer: é preciso encontrar modo de desfazer o nó górdio feito pelos partidos do centro. Ora, isso é absolutamente contraditório com o que Passos foi pedir a Cavaco. Se o chefe de Estado aceitasse fazer de mensageiro, morria a mensagem e o portador da dita.
Tudo visto e revisto, resta dizer duas coisas.
Uma: podemos aplaudir ou criticar as decisões tomadas pelo TC; o que não podemos é aceitar que os juízes sejam pressionados por interposta pessoa, sobretudo quando essa pessoa é o chefe de Estado. Por isso, convinha que Passos Coelho e os seus conselheiros ponderassem um pouquinho melhor a geografia dos estragos antes de proclamarem a "guerra".
Duas: esta discussão sobre o TC, que se arrasta ad nauseaum , contém em si uma profunda hipocrisia. Convém talvez lembrar que 10 dos 13 juízes são propostos pelos partidos e sufragados pelo Parlamento. Com jeitinho é até possível identificar quem indicou quem e quem é amigo de quem.
De modo que, no final do dia, a culpa não é dos indicados. É de quem os indicou. Por ter partido do princípio de que bastava indicar para garantir que, chegado o mau tempo, haveria no TC guarda-chuvas para amparar o dilúvio...