<p>No Xinjiang chinês, como no resto do mundo, a "guerra ao terror" aparece enredada em dúvidas. Mas há uma realidade fundamental. Numa fascinante "Miniatura", intitulada "Manhã", o saudoso Alexandre Soljenistine explica o que acontece à alma, quando dormimos. O espírito solta-se do corpo, desliga-se da miséria da condição humana, voga por espaços inauditos, e regressa purificado. Quando acordamos, a alma limpa transforma-nos. Por um momento, somos capazes de penetrar mistérios, encontrar a expressão certa, amar, pedir perdão e perdoar. </p>
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Diz Soljenistine que é como se um "lago perfeitamente calmo" se instalasse dentro de nós.
Mas a serenidade dura pouco. Um pensamento menor, um impulso, uma frase de alguém, quebram a perfeição. Regressam o caos, a vergonha, a ira, as flores do mal. É a realidade.
No dia 11 de Setembro de 2001, tudo parecia definido e claro, como no estado de pureza da alma. Sabia-se onde estava o mal, e onde estava o bem. Calcinar milhares de pessoas inocentes, fosse qual fosse o pretexto, era o mal. Encontrar, desarmar, neutralizar e responsabilizar os responsáveis, era o bem.
Desde então, a realidade complexa, tortuosa, as avalanches de erros, mal-entendidos, inverdades, excessos, delitos a pretexto da lei, tornaram tudo confuso e relativo. A dúvida instalou-se, trazendo na bagagem a descrença, a indiferença, o cansaço e o desinteresse.
Do fundo da confusão, continua uma evidência: há quem - seja individuo ou grupo, associação temporária ou organização trabalhada, célula regional ou corporação multinacional - queira eliminar o maior número de civis, para provar uma ideia, ou avançar uma estratégia. É o terror fundamental. Mas tudo o resto está em discussão.
Veja-se o caso dos polícias chineses, mortos no Xinjiang, enquanto praticavam a corrida matinal. O ataque contra o seu grupo é justificável? São aqueles homens combatentes? E em que conflito?
A região do oeste chinês, também chamada Turquestão oriental, é maioritariamente povoada pela etnia Uyghur. Os seus membros são, na generalidade, muçulmanos, fisicamente parecidos com os vizinhos do Afeganistão e Paquistão. Há, nesse meio, diversos grupos de contestação ao regime chinês, alguns recorrendo ao bombismo de locais públicos. O mais conhecido é o ETIM.
Em Guantanamo, vi vários Uyghur. Tinham sido capturados pelos americanos, e seus aliados, numa base de treino perto de Tora Bora. Nos seus volumosos processos, instruídos pelos militares dos EUA, sempre disseram que não eram da "Al Qaida", e que pretendiam apenas combater "a opressão de Pequim".
Um dos oficiais que investigaram o caso (e que, sintomaticamente, queria ver o processo julgado nos tribunais civis), disse-me ter dúvidas sobra as motivações, objectivos e "processos" dos militantes.
"Parecem-me sinceros na oposição radical à China, e aos excessos ali cometidos durante décadas. Mas alguns possuem um segundo plano, para além da libertação nacional. Trata-se de instalar um estado Talibã - chamemos-lhe assim - de criar uma espécie de democracia totalitária, e de recorrer ao ataque a alvos civis, sempre que necessário, até esse fim ser atingido", disse-me.
No passado, a China de Mao e dos seus sucessores apoiou os "movimentos de libertação nacional", em África e na Ásia. Forneceu armas e instrutores a muitos grupos anti-europeus. Era a solidariedade "anticolonialista". Pequim tem agora um problema semelhante em mãos.
Mas, para "guerrilheiros" ou para "delinquentes", há ou não limites morais às acções violentas? E quem dita a passagem da moral ao direito?