Era um fim de tarde de conversa mole, numa esplanada minúscula (destas que agora se descobrem a cada esquina da cidade para combater a proibição de fumar no interior dos cafés…), e ao meu lado uma criança morria de aborrecimento, torcia-se na cadeira, tentava sair mas a voz da mãe lembrava-lhe que na rua passavam carros e era um perigo, e a mãe ia embalada na conversa com uma amiga e nem dava por ela, e de repente a minha filha murmurou "nunca me lembro de ter saído de casa sem um livro, e somos tão felizes aos 9 anos quando lemos os livros certos… Será que as crianças hoje ainda lêem os livros certos?"
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E começou numa série de intermináveis "e tu lembras-te?...", todos relacionados com cenas de livros que há muitos anos tínhamos lido em conjunto ("lembras-te daquelas férias na Barra, em que tu nos leste o "Coração" inteiro? Tu a leres e a gente a chorar, a chorar…"), diálogos inteiros que sabíamos de cor, ou apenas frases, ou apenas palavras, ou aqueles nomes tão típicos de certas épocas, os "Leôncios" da Condessa de Ségur ("foi com ela que percebi pela primeira vez o que era a luta de classes", disse ela entre gargalhadas, "os criados tão separados dos patrões, os pobrezinhos tão sacrificados e tão bonzinhos… Só podia dar no que deu…!")
Mas hoje as crianças não lêem livros. Ou não lêem "os livros certos", aquilo a que vulgarmente chamaríamos "os clássicos"… E a falta que isso lhes faz…
A falta que lhes faz a leitura daquelas histórias sem negras magias, sem guerras do princípio ao fim, sem tenebrosos inimigos atacando a humanidade (está bem, os bons acabam por vencer mas às vezes a fronteira entre o Mal e o Bem é tão ténue, e até que isso aconteça, meu Deus, quanta sangueira derramada, quantos pesadelos, quantos mortos, quanta gritaria…), aquelas histórias que lhes dão vontade de crescer e de acreditar nas pessoas (têm muito tempo depois para perceber o que se passa…)
Aquelas histórias que as tornam crianças felizes.
Hoje há uma única preocupação em relação às crianças: passar-lhes para as mãos um computador o mais cedo possível.
Agora, quando um pai vai ver o seu rebento acabado de nascer, juntamente com a proposta de sócio do Benfica, deixa-lhe no berço um computador topo de gama.
E habituadas desde sempre aos meios frios, como poderão elas ter, um dia, o coração aquecido?